quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

A arte é para todos? Alguma reflexão sobre a condição política e social de arte e cultura no Brasil a partir de um jovem engraxate e sobre o gosto estético


Cruzando a Praça Floriano, Cinelândia, altura do bar Amarelinho, eu ía apressado, correndo em ritmo de dezembro e fugindo do sol que escaldava, rumo à já não sei mais qual compromisso. Uma voz do nada apregoou:
- Teatro para todos?
De súbito não entendi e, por isso, olhei para trás, mas sempre em marcha. Notei, então, que havia na extremidade oposta a mim e à voz, próxima ao meio-fio que beija a onipotente Avenida Rio Branco e onde encostam parte da numerosa frota de táxis e ônibus da frenética cidade, cabines improvisadas da já instituída campanha realizada pela Associação dos Produtores de Teatro do "Teatro para todos", que acontece normalmente no último mês do ano e vende ingressos das peças de praticamente todo o circuito teatral carioca a preços simbólicos (mais que simbólicos até) ou populares, podendo chegar a cinco reais, na intenção de revitalizar, aproximar e renovar o público de teatro.
Notei a voz talvez mais pela aparente falta de nexo da pergunta lançada no meio da praça do que pelo impacto físico causado pelo semi-grito, afinal de gritos vive uma metrópole, a "Babel contemporânea" ou a versão atualizada das feiras antigas e medievais em que abundavam mascates e figuras mercenárias tomando de assalto (às vezes literalmente) os passantes, com sedução na voz a revivendo a atemporalidade dos mitos das "Mil e uma noites". Mas a minha voz, digo a voz que me assaltou da correria que nos aflige a todos e nos faz correr sempre como que atrás de um grande prejuízo, além de denunciar uma atitude performática, erigiu-se no ar com requinte de ironia, e com os trejeitos do corpo - de genuína malemolência e malandragem carioca - resultava de legítima provocação, o que pude constatar quando olhei para trás, sempre marchando.
Em fração de segundos a "ficha caiu" pois num golpe de olhar pude, aí então, perceber a presença dos guichês com placas "teatro para todos". A voz do do rapaz de seus vinte e alguns anos fazia, inteligentemente, menção de olhar e de projetar a voz aos guichês da campanha.
Respondi-lhe:
- Sim, o teatro é para todos - com certa alegria na minha voz, pois como sou do teatro e acho a campanha uma politizada iniciativa da classe, senti-me estimulado a dizer, ante sua ironia, que "sim, o teatro é para todos", sempre marchando.
Mas o rapaz foi mais longe do que eu. Em tão poucos segundos do fortuito encontro ao longo da praça, pensei que ele fosse seguir na "brincadeira"  até o ponto que a manifestação de uma improvável consciência crítica sua se diluísse na previsibilidade do humor corriqueiro. Mas a micropausa que se seguiu à sua provocação me fez ver, ou melhor, rever, que o teatro, assim como a arte no Brasil ainda e de um modo geral, não é mesmo para todos, que o acesso aos bens simbólicos nesse país não é coisa que graceja em cada esquina.
De onde saíra aquele quase moleque com tamanha agudeza? Sua pergunta lançada ao ar no espaço da praça naquele típico tom de quem já pergunta sabendo a resposta negativa, cético, niilista, oriundo, provavelmente, de quem já deve, em não muitos anos de vida ter sentido na carne as desigualdades históricas da sociedade brasileira, agora reflito, agiram com uma argúcia praticamente socrática de investir na campanha (repito, importante da classe teatral para amenizar um problema cultural do país) um sentido de indagação e descrença sobre um panorama que transcende a própria temporada popular dos teatros nesse fim de ano. Em poucos segundos, era como se ele estivesse na espera de alguma resposta mais profunda que mostrasse a ele que sua provocação era infundada. E não era.
Por que teatro a preços acessíveis em no máximo quatro semanas do ano e não durante o ano inteiro? É  sabido que o teatro é uma arte, assim como várias outras, que geram muitos custos, mas por que o governo não subvenciona, então, parte desses gastos continuamente para que a maioria da população possa ter acesso à cultura sempre? Impossível? Inviável? Esteve aqui no Brasil há pouco tempo o Théâtre du Soleil que não nos deixa mentir, companhia tradicionalmente mantida pelo Estado francês, mesmo, hoje, em tempos de crise econômica devastando a Europa. E o Brasil surfando em relativa prosperidade e emergência econômica não poderia fazer o mesmo? Caímos em dois problemas de sempre, então, para nós: a corrupção seguida de impunidade, que assola o país de cima para baixo, do Congresso às feiras de ruas e praças, das Capitanias Hereditárias ao nepotismo praticado dentro do gerenciamento do bem comum, da rés-pública. Porque num país onde se devia tanta verba, onde se leva dinheiro público na cueca, onde se "lava" dinheiro, financiar parte do ingresso do teatro ou de qualquer outra manifestação cultural que, decididamente, participa da formação de cidadãos melhores, não seria nada oneroso. O que falta não é recurso, é amar o Brasil e sua gente, respeitá-los.
Nossa mentalidade política ainda não é capaz de enxergar arte e cultura como artigos de primeira necessidade na formação de nossa cidadania. Aliás,  é interessante a ignorância e falta de sonho das massas. E olha que o país evolui (na economia e na instituição da democracia, por exemplo) a olhos vistos. Mas ainda somos mesquinhos como sociedade.
Para além de uma campanha sazonal de preços populares - que devo aqui dizer de novo, não considero má, vejo-a abrindo horizonte para muitos, inclusive para que nós artistas sobrevivamos - e da própria subvenção estatal, chego a pensar que o cidadão precisa mesmo é ter condições mínimas geradas por um projeto de país minimamente decente de lhe assegurar acesso a bens fundamentais como, por exemplo, emprego, cujo salário tenha realmente poder de alcance para dar conta das necessidades  poder ir ao teatro com a família nos fins de semana tranquilamente. Por que não? "A gente não quer só comida", já disseram os Titãs em época de inflação galopante.
Eu sei que é mais fácil falar, ainda mais em tempos de crise internacional em que se avolumam os descontentamentos com a evolução neoliberal que excluiu e exclui tantos. Por isso, pode acreditar, tento sempre ver os dois lados de tudo e buscar a moderação.
E boa parte dessa reflexão passa pela minha cabeça enquanto cruzava depressa a Praça Floriano.
Sempre em marcha, ainda ouviria do rapaz, depois que eu, intrometido e defensor da causa da arte e do teatro, lhe disse "sim, o teatro é para todos" tentando incutir nele algo para além da própria campanha, que "Teatro é chato. Já fui. Gosto não".
                 O que levei no bom humor e repliquei:
- Não é não, rapá! Você que deve ter assistido à peça errada. Teatro é bom! - disse a última frase com toda a exclamação que podia saltar do meu peito. (Até porque, para não gostar ele precisa do acesso aos repertórios. Gosto se constrói).

                 E fui.
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Algum tempo depois, veio meu modo dialético, fiquei pensando: "Mas será que de repente ele já não foi mesmo ao teatro? E será que percebeu, nessa experiência,  que realmente que não gosta? Não será isso é um direito seu?". Afinal tenho amigos que não gostam, preferem cinema, por exemplo, gente culta, embasada. Embora eu ache teatro o máximo, conheço pessoas que curtem um cinema cabeça e não uma peça de teatro.
De repente, não será  seu canal de conexão criativa com o mundo uma outra forma de arte - música, grafite, sei lá? Ou mesmo um esporte? Ou qualquer outra atividade simbólica desempenhada honestamente? E aí, então, pergunto: será mesmo a arte para todos? Serão todos para a arte? Embora seja difícil existir alguém que não goste ao mínimo de música, muita gente não gosta teatro, assim como não gosta de cinema e por aí vai. E isto revela que antes até da questão social do acesso, há a afinidade, o gosto. (Mas, insisto, é sempre melhor não gostar depois de se poder apreciar).
Só escrevi este apêndice para deixar claro que, embora ame e defenda o teatro e saiba da sua elitização social que faz muitos dizerem que não gostam dele mais porque nunca o puderam apreciar de forma íntegra e ampla, respeito quem possa afirmar que não gosta.

Izak Dahora

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

"Só pra contrariar"

Nos últimos três dias, ao ligar a tv tive a sorte de me deparar com momentos de arte, beleza e poesia. E, como se pode imaginar, contrariando o que acaba sendo regra, pois muitas vezes pasmamos diante do nada na tela, na prótese de vidro desta e em diálogos inócuos, em personagens e pessoas visivelmente ocas quando muito patiando num mar de clichês... e daí vou zapeando, zapeando, zapeando - zapeio muito, não sou nada fiel a nada. Se o programa não é interessante, se o papo mostra que não vai longe ou se vejo a falta de conteúdo escancarada constranger à pseudo-celebridade que não sabe do ridículo que faz ao se expor tão vazia e constranger a mim, que não desejo assistir ao espetáculo da calamidade alheia - causando em mim a vergonha que deveria, no mínimo, ser também do outro -, vou mudando logo de canal. Pra poupar a mim e aos pretensiosos!
E o pior é que, certas vezes, não há nada razoável à nossa já combalida humanidade nem na tv aberta e nem na fechada. 

Mas anteontem, num vespertino da tv por assinatura (o Estúdio i, Globo News), assisti à cantora Pitty lançar seu novo álbum, Agridoce, em parceira com o músico Martin, e interpretar uma canção belíssima, executada de maneira clara e simples, acompanhada por violão e tocando, ela própria, uma espécie de xilofone - o qual trazia delicadeza ímpar. O que me tocou mesmo, especialmente, foram os versos finais, construindo bela imagem, poética e calcada numa oposição tomada do lirismo de uma voz que passa a canção (Dançando) na ânsia pela graça, beleza e amor: 

"O mundo acaba hoje e eu estarei dançando
O mundo acaba hoje e eu estarei dançando com você"

http://www.youtube.com/watch?v=wgGUyIcgutg (Vale ouvir toda a canção!)

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Já hoje, passando pela sala, tv ligada, novela das sete horas, algo que já devo ter ouvido em algum lugar:

"Amor sem dor não existe; já dor sem amor, sim, e é masoquismo..." 

Achei interessante e delicada a maneira como se construiu a cena em que o pai consolava a filha adolescente nas descobertas amorosas da última e nos paradoxos desse sentimento fundamental, recorrendo a uma citação, provavelmente já muito repetida, mas curiosamente bem inserida no diálogo.
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Por fim, ligo a tv num programa de entrevistas (3 a 1, Rede Brasil) - gênero televisivo que adoro - e saboreio uma discussão filosófica em torno de vida, religião, morte e arte, a partir do entrevistado, o escritor Rubem Alves, terminar com as seguintes palavras do mesmo, quando este respondeu à derradeira pergunta (sobre qual o seu tema predileto de escrita): 

"Ostra feliz não faz pérola (...) Eu escrevo para parar de sofrer".

Grande confissão e voto de amor ao ofício! No que me reconheci plenamente. Fazemos arte para nos livrarmos do que nos inquieta, incomoda ou nos faz saltar de fúria ou de alegria - mas parece claro que uma grande cultura, uma grande literatura, enfim, faz-se mesmo é de um grande conflito. Os grandes como Dostoiévski, Kafka e alguns outros citados durante a entrevista estão aí para não nos fazer mentir.


Às vezes (e continuamente, por que não?) a tv pode nos surpreender verdadeiramente. Por isso acredito nesse veículo, na sua capacidade de não oferecer o que é mais fácil e o que grande parte das pessoas querem ver e ouvir - principalmente quando é feito hoje em momentos aparentemente despretensiosos e alternativos, com inteligência e criatividade, em relação ao espetáculo pelo espetáculo, à autopromoção de pessoas despreparadas na mídia querendo aparecer a qualquer custo, ao botox (em uso desenfreado) que parece estar transmutando a raça humana (vide atores, atrizes e apresentadores), enfim...


Izak Dahora

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

a invenção da palavra


vasculho o baú da Língua.
procuro uma palavra e não acho.
palavra que não sei mas que intuo ser-tradução
da solidão ímpar neste mundo.

com ares de culta pressinto-a bela, e exótica,
e por não andar nas bocas comummente
sinto-a forte, frágil, pura e indecente

na sonoridade estranha, na ortografia caótica
de vogais e consoantes
e consoantes
e consoantes dissonantes
preenchendo o vácuo entre os órgãos talvez lá
esteja ela
nas solidões que compõem os hiatos entre minhas carnes
fazendo música!

provavelmente,
caso realmente exista,
vocábulo eternamente estrangeiro para mim,
                                        já da alma da linguagem expatriado e emudecido

já bem articulada pelas mandíbulas,
prevejo o gozo com ela, a palavra,
percorrendo suas sílabas e elas me percorrendo
difíceis mas suculentas
pelo vasto e inculto céu da minha boca.

procuro uma palavra
palavra de fé, palavra-chave
palavra trágica que se abata sobre mim
palavra alada que chegue ao outro expressão de mim.

e devastado vasculho o baú da Língua.
e, de repente, a palavra-Prima
(ou irmã, mãe, enteada...)
está além do verbete
é um futuro ainda impronunciável roçando
entre a língua e os dentes
numa extensão da luta, palavra-bruta, do pensamento

aos dicionários, filólogos bibliófilos e poetas!
às confrarias, academias, botequins filosóficos, sociedades secretas!
aos saraus dos confins, aos serafins!
aos dialetos, línguas vivas ou mortas, gregos e latins!
procuro e não acho...

neologia.


Izak Dahora

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

4 "a"(sas) de um desejo


a pausa perpétua e a greve de fome ao ruído nababesco.
a cirrosse hepática e amarela do ébrio na sua lucidez líquida.
a ideia parida sem anestesia ao teleguismo entorpecente das massas.
a busca incessante da forma à imagem pronta de uma face fácil de lágrimas.


Izak Dahora

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Masemba, kusemba, semba, samba

Hoje, dia dois de dezembro, dia nacionalmente dedicado ao samba, este monumento da nossa cultura cuja matriz descende de África, continente tão sofrido por contingências históricas quanto surpreendente e criativo por paradoxo e alguma espécie de resistência e teimosia, fico - por motivos óbvios - com os versos inspiradamente poéticos de duas canções de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito.

Presença agônica da morte e da melancolia chorando ao violão, marcas permanentes na obra de Nelson Cavaquinho, um poeta do povo. Reparem na presença constante, também, na maneira como o eu-lírico na letra de cada canção se auto-define como poeta, algo quase como, a um só tempo, exercício de confissão e metalinguagem, de maneira simples, sutil.


"Em Mangueira
Quando morre um poeta
Todos choram
Vivo tranquilo em Mangueira porque
Sei que alguém há de chorar quando eu morrer

Mas o pranto em Mangueira é tão diferente
É um pranto sem lenço
Que alegra a gente
Hei de Ter um alguém
Pra chorar por mim
Através de um pandeiro e de um tamborim"
                                             (Pranto de poeta)

"Quando eu piso em folhas secas
Caídas de uma mangueira
Penso na minha escola
E nos poetas da minha estação primeira
Não sei quantas vezes
Subi o morro cantando
Sempre o sol me queimando
E assim vou me acabando.
Quando o tempo avisar
Que não posso mais cantar
Sei que vou sentir saudade
Ao lado do meu violão
Da minha mocidade"
                                                (Folhas secas)


quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Auto-revelação

Acabo de descobrir que estou preocupado demais com o futuro.
Querendo controlar os passos, o destino...


Destino?
Bom, se ele existir de fato será à minha revelia, não é mesmo? 


Por isso, é preciso deixar correr... e viver.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

A irritação da espera, uma velha sábia e quarenta minutinhos mágicos


Já não me lembro ao certo como iniciou-se a nossa conversa dentro daquele voo cujo atraso já avançava mais de uma hora de espera. E isto numa simples ponte-aérea, em parâmetros já instituídos não operantes de uns tempos para cá no nosso caos infra-estrutural e aéreo de país-sede de Copa e Olimpíadas... (Meu Deus, o que é que ainda encararemos até esses eventos em aeroportos como Congonhas, Tom Jobim, Guarulhos, Santos Dumont...?).

Sentei numa das poltronas localizadas na parte inicial do avião, diferentemente da maioria dos colegas que vinham comigo do mesmo evento, o Trofeu Raça Negra 2011. Era a minha vontade de, assim que o avião aterrisásse, eu pudésse me livrar o mais rápido possível da aventura que é voar hoje no Brasil. Ao meu lado, na poltrona do meio, estava um senhora num traje não muito frequente em pessoas da sua idade: um chapéu panamá, jaqueta vermelha (para abrigar-se da baixa temperatura paulistana), calça jeans já bem desbotada e um par de tênis. Agora recobro pela memória que no princípio do nosso bate-papo (que viria a ser iluminado) fiz menção sobre seu chapéu a la Tom Jobim. Ela me disse que vinha de Florianópolis após passeio a cidades do interior do Chile e que fizera escala na capital catarinense mais por insistência dos amigos do sul do país. Tudo com muita leveza e sem aborrecimentos, diferentre de mim, todo o fastio, pelo atraso do voo, pelo sono da noite anterior mal dormida, por minhas revistas (possibilidades atraentes de distração) terem ficado na mala despachada por insistência de um funcionário da companhia aérea e por outras cositas que não vale a pena ressuscitar aqui.

Muito vívida, Dona Arminda, que só depois, no fluxo da conversa, fui saber que assim se chamava, perguntou-me de onde vinha aquela trupe animada de figuras de pele negra da qual eu fazia parte. Devo dizer que ela em nenhum momento foi preconceituosa ou exerceu discrimanação racial. Percebeu, na verdade, a relação entre aqueles artistas que conversavam enquanto entravam no avião.

Disse a ela de onde vínhamos, expliquei a natureza do evento e a entidade mantenedora, respectivamente, a promoção da cultura negra e de seus fazedores e a Universidade UniPalmares, da cidade de São Paulo. Dona Arminda revelou ter admiração pela colega e atriz Elisa Lucinda, uma das integrantes da trupe, lembrando de uma peça sua que assistira. Perguntei, então, se não queria conhecê-la depois, já no Santos Dumont, no Rio, prometendo mediar o encontro entre artista e fã, mas a senhora, muito ética e discreta, disse-me que os artistas também tem o direito de descansarem e não serem abordados em circunstâncias como aquela. Achei um pouco exagerado, insisti em promover o encontro entre as duas, mas ela se manteve na mesma posição e eu, afinal, compreendi.

De repente, parecia não existir mais assunto e que haveria entre nós aquele vácuo sepulcral e constrangedor que costuma ocorrer entre dois indivíduos que dividem assentos próximos num vagão de metrô, num banco de ônibus ou em poltronas de avião. Foi assim na ida para São Paulo... Até quando o sujeito me fez a gentileza de repassar as embalagens do meu lanche que à comissária, permaneceu calado, como que acelerando o processo para que não fosse incomodado na música que ouvia no seu i-fone. E quando eu fazia fotos da paisagem vista pela janela ao aterrissar, parecia desaprovar minha ação, com ar de superioridade – devia me considerar um idiota, menos assíduo viajador do que ele...

Ao voltar o olhar para Dona Arminda eu a percebi comovente: pequenina, o rosto ainda menor quase todo dentro do chapéu, com a mãozinha direita apoiando o queixo como que tentando dormir mas sem conseguir, provavelmente se sentindo só... Achei que queria conversar mais e que eu de repente a fiz pensar que ela estava me atrapalhando. Então agora eu foi quem "puxou" assunto:

  • Dormiu?
  • Não.
  • Ãhh, porque eu não consigo dormir dentro de ônibus, táxi, muito menos de avião.
  • Também não...
  • Mas a senhora veio de onde?
E então ela me contou o que já revelei no início desta crônica. Depois, comentou que a vida de artista deveria ser bem difícil, instável e sem o glamour que as pessoas costumam ver nessa profissão. Confirmei sua especulação mas acrescentei que os prazeres de estar num palco recompensam toda nossa luta.

Para não deixar o bate-papo morrer, aproveitei o momento em que o aeroplano alçava seu voo e revelei que viajar de avião é uma coisa que me deixa sempre um pouco tenso, principalmente quando decola e quando encara turbulências. E com a fragilidade do nosso serviço aéreo então...

  • Ih, mas de Florianópolis pra cá, peguei muito mais turbulência – minimizou ela com naturalidade.

A senhora me disse ainda que, nesses casos, a gente deve mentalizar uma luz branca sobre o nosso destino de chegada e imaginar o contato, os abraços entre nós e as pessoas e as coisas queridas que nos esperam, agindo como se já estivéssemos "lá". "As pessoas não entendem que a força do pensamento é maior que tudo", me exortou, sem omitir que devemos ter cuidados, precauções na vida, é claro.

Se a companhia já me estava sendo agradável, senti que com estas palavras acima eu estava ao lado de uma pessoa muito especial e iluminada. Dona Arminda me falou da presença do pensamento positivo em sua vida. Perguntei se tinha religião, ela respondeu que de católica evoluiu com o tempo ao espiritismo, contou experiências de sua vida bastante pobre no início do casamento com o ex-marido, suas ocupações antes e depois da aposentadoria etc etc etc. Contou-me que começou no serviço público servindo cafezinho e terminou advogada, mesmo numa época de opressão sobre as mulheres. Lembrei de meu avô falecido recentemente, de sua história de superação, saindo da roça, alfabetizando-se aos dezoito anos e tornando-se médico veterinário anos depois. Fiquei emocionado. Contei a ela.

Mas, na verdade, eu só queria ouví-la. Até o momento em que a senhora pediu para que eu falasse um pouco de mim. Não costumo - nem mesmo tenho o gosto- de falar de coisas muito pessoais. Exagero meu fruto do medo de ser narcisista e de meu modo encimesmado, desconfiado. Mas, depois de pensar um pouco, abri-lhe algo que me acabrunha constantemente: o descontentamento com a falta de critérios de avaliação (de crítica e de público) que observo em meu meio profissional, o receio de não reconhecerem o quanto estudo e me esrforço, o medo ter feito a escolha errada apesar do amor desmedido pelo ofício... as injustiças, as inseguranças geradas por ser artista no Brasil, especialmente.

E novamente Dona Arminda me veio com a bendita "luz branca":

  • Olha, não tenha pressa de nada, não fique ansioso e nem tenha medo. Apenas tenha em mente que você terá aquilo que deseja. Pense, no fundo, que você já é aquilo que busca... E verá que logo seu sonho vai se realizar! Certa vez meu ex-marido e eu não tínhamos um centavo para irmos trabalhar. Pedi a Deus com toda a fé e logo encontramos um dinheito no chão cujo valor pagava nossas passagens de ida – a volta, já seria outra história... Pode acreditar em mim! Pense positivo e todos, logo, também acreditarão no seu sonho!

Os aproximadamente quarenta minutos de ponte-aérea já estavam perto de terminar, mas nossa conversa fluía. Meu diálogo com as pessoas mais velhas, aliás, sempre foi muito intenso. Se sempre nutri um forte sentimento de inadequação ante às coisas (e às multidões) especialmente durante a adolescência, isso, porém, jamais o foi com os mais velhos. Não sei explicar. Uma moça, pelo porte delgado e pela conversa que mantinha do outro lado do corredor, de vez em quando parecia admirar a cumplicidade de velhos amigos que Dona Arminda e eu demonstrávamos.

Houve tempo para a pequena senhora solitária – cuja filha vive em Teresópolis com a família e o filho, no exterior - falar-me, ainda, da atividade como voluntária que exerce há dez anos numa fundação para cuidar de crianças com câncer. Contou como é bonto o trabalho de dar suporte às crianças (e seus pais) que vem de longe e que não possuem recursos para manter os gastos da doença e da distância; como é tocante ajudar a dar dignidade a vidas mesmo que no breve período que lhes resta; como que o primeiro contato de espanto com crianças muitas vezes já mutiladas por consequências da doença se converte imediatamente numa revalorização da vida nos seus aspectos mais simples em vez de reclamar, reclamar e reclamar de coisas tão pequenas quando se tem saúde.

Dona Arminda disse que sua fundação precisa de voluntários homens. Ficou o convite, entendi logo – por ser homem e por ser artista, o que estimula muito engajamento de outras pessoas. Trocamos e-mails e telefones. Mas pediu para que a procurasse antes do dia vinte de janeiro, pois sua próxima viagem será nesta data, rumo ao Leste Europeu. As maçãs enrugadas de seu rosto e seus lábios encheram-se de prazer ao falar das cidades já visitadas: Paris, Moscou, Atenas... e agora Praga, Viena, Budapeste...

Prometeu me enviar um e-mail com detalhes sobre a fundação e pediu para que eu fosse logo, "antes dela morrer". E eu disse "que é isso, Arminda!", pois ela já me pedira para não chamá-la nem de "dona" nem de "senhora". (Mas fiquei pensando, na verdade até agora penso se não foi um sinal a condição que me impôs: "antes de ela morrer...". Bom, ligarei ainda essa semana, se minha memória não falhar). Para arrematar aquele encontro com um tirada digna de um contista que calcula os passoa rumo ao momento final surpreendente de uma narrativa, ela mandou:

  • Você já voou de paraquédas?
  • Ãhn?
  • De paraquedas, eu disse?

Fiquei passado! Disfarcei o quanto pude para a boca não cair.

      • (Minha réplica foi o silêncio)
      • Pois faça. É o melhor remédio para se perder o medo. No início dar uma coisa no estômago, mas depois, é uma beleza, uma liberdade indescritível! Faça isso!

Eu, jovem velho, com tantos medos, e ela, idosa, tão disposta. E antes a própria chegou a perguntar se eu conhecia a diferença entre velho e idoso. Você já pode imaginar qual é. Idosa é a cronologia, irremediável; velha ou jovem pode ser a alma – independente de idade. Sinto que ela percebeu no seu íntimo que eu precisava ouvir tudo o que ela me disse. Um anjo enviado por Deus, a Dona Arminda!

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Percebi que apesar de toda aquela espera causada pela má adiministração corriqueira e das autoridades de nosso país que não aplicam como devem o dinheiro de nossos impostos, antes de embarcar naquele voo eu estava irritadiço demais, cansado demais daquilo e de outras cositas pelas quais não merecem que nos consumamos tanto, principalmente quando só se tem vinte e poucos anos... Eu stava "velho" e Dona Arminda me rejuvenesceu, me devolveu, na verdade, à idade eterna dos que sonham.


Izak Dahora

sábado, 6 de agosto de 2011

Baudelaire

"O que não é ligeiramente disforme parece insensível - donde decorre que a irregularidade, isto é, o inesperado, a surpresa, o espanto sejam uma parte essencial da característica da beleza. O Belo sempre é estranho."


                                                (Baudelaire, poeta francês - extraído da introdução de "Ler o teatro contemporâneo", de Jean-Pierre Ryngaert).

Ítalo - ou a morte de um ator cuja história é parte da evolução do teatro brasileiro moderno.



Uma voz marcante, uma máscara facial e movimentos econômicos mas que poderiam carregar nas tintas para uma comédia mais desabrida, caso fosse necessário.

Mais do que ter podido acompanhar a carreira teatral de Ítalo, comprovei sua importância de Ator emblemátco nos compêndios sobre a evolução e a modernização do teatro brasileiro. Seu nome e sua imagem são figuras que não podem faltar a qualquer livro que se arvore a acompanhar a trajetória dos nossos palcos dos anos cinquenta para cá.

Egresso do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) do industrial paulista e mecenas Franco Zampari (donde vieram também Cacilda, Cleide, Maria della Costa, Walmor Chagas, Fernanda, Sérgio, Tônia Carrero, Paulo Autran, e muitos outros deuses deste olimpo teatral), Ítalo fez parte de uma geração que pavimentou o caminho para que hoje pudéssemos ser atores mais dignos nesse país (não consigo me furtar da voz de ator nessa pequena homenagem).

Até então, nossos palcos eram predominantemente ocupados por iniciativas centradas no personalismo e no carisma de alguns atores e empresários, talentosos e importantes para nossa produção como Leopoldo Fróes e Procópio Ferreira, mas que não ousaram a ponto de engajarem-se num projeto mais ambicioso artísticamente e que colocasse o Brasil na atualidade do que então se fazia mundo afora. Foi com a geração de Ítalo que começamos a ver desde o TBC e passando pelo seu Teatro do Sete, por exemplo, (companhia sua com Sérgio, Fernando e Fernanda) repertórios que mesclavam num sentido sistemático, as peças de vaudeville ou boulevard de um Feydeau, de mais proximidade com as necessidades comerciais de toda companhia até autores como Bernard Shaw e Pirandelo, para citar dois. Colocação em prática de novos projetos de encenação fundados numa dramaturgia mais densa e consistente, de complexidades filosóficas e psicológicas a exigirem estudo minucioso de diretores e atores. Não havia mais espaço para o ponto (alguém que soprava o texto de dentro de um cadafalso) e nem para o caco (improviso a fim de "ganhar" a plateia normalmente com piadas e maneirismos imediatos.

Ítalo e sua geração participaram ainda do Grande Teatro Tupi, movimento pioneiro que buscava descobrir uma linguagem televisiva nos primórdios do veículo, levando ao público peças de autores fundamentais como Shakespeare, Eugene O'Neill, Arthur Miller e Tenessee Williams, e ao vivo.

Pela vinculação de seus pares e contemporâneos a um teatro que buscou sua base no texto dramático, intacto das interferências vaidosas dos intérpretes, Ítalo esteve íntimo da palavra e fez uso dela com sofisticação e maestria. Nesta entrevista que se segue, concedida a Geneton Moraes Neto pode-se perceber como que o grande ator enfatiza aquelas palavras que vê com mais necessidade de impacto, de um modo teatral e sincero.

Um ator "cerebral, cerebrino" - precisa e bela definição da crítica Tania Brandão em O Globo de 4/8 - e que nos emocionava pela maneira (moderna) de expressar-se permitindo o bailado do pensamento, das ideias e das palavras em sua face limpa, econômica, sucinta.

Grandes atores e personalidades como Ítalo não morrem. Vivem, insistem na lembrança.


Izak Dahora

sábado, 30 de julho de 2011

Tentando organizar os poemas escritos na feitura de um livro tão sonhado ainda não publicado. Força! Tempo!

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Projeto de prolixo

              à tirania do verbo, do verso e da linguagem

eu quero falar cada vez menos
eu quero falar mais com menos
quero falar menos para ouvir os falantes de outras falanges.
e satisfazer meu interlocutor de entendimento.
quero dizer tudo com aparentemente nada
eu quero falar menos difícil e ser claro como a água.
eu quero meu monólogo de um modo mais diálogo
menos bife e mais grãos. menos texto mais contexto.
Eu quero eu menos só
                                 lilóquio


Izak Dahora

A Mário de Sá Carneiro

Não sou exatamente um engodo, uma fraude,
gênero de farsa, pseuda obra-prima da linguagem
como também escapo da autodefinição de superhomem,
de máquina.

Sou ao fim o meio
“qualquer coisa de intermédio”, às vezes grande às vezes pequeno
na maior parte do tempo medíocre,
cônscio da ignorância fundamental de todos,
mas convicto de ter algum recheio
não sendo simplesmente casca, eu.

Tentando escapar dos riscos da bipolaridade,
feliz pelo auge e pela queda
-pois ambos partes de meu todo ambíguo- vou errando...

E daqui a alguns anos, lá na linha de chegada
com o peso dos anos e os erros da experiência
poderei me dizer pouco mais que razoável.


Izak Dahora

Sonho de trova


Meu sonho é ver meu verso virar canção.
Não lê-lo; ouví-lo, quando neste dia
for surpreendido pela nova possibilidade
de algo que rompeu de mim e eu não percebia.
Quando tudo que me é ruído e som das vozes que me
assaltam e as escrevo, se tornarem melodia.
Quero ser um trovador
Quero ser o que já foi caminhando errante
sobre os caminhos de pedra da Idade Média
embriagado em noite alta.
E gozar de ver meu verso fazer soprar delírios
nos ouvidos da mulher amada.


Izak Dahora

domingo, 22 de maio de 2011

Identidade(s) brasileira(s).

Tenho andado muito interessado na investigação da identidade brasileira, na brasilidade, no que realmente sejamos...
Links de palestras sobre a identidade brasileira. Vídeos da CPFL Cultura exibidos no programa Café Filosófico, Tv Cultura - que eu aprecio e recomendo. Palestrando: Antonio Medina Rodrigues, Demétrio Magnoli e José de Paula Ramos Jr.


http://www.cpflcultura.com.br/site/2009/11/30/integra-a-identidade-brasileira-mito-e-literatura-jose-de-paula-ramos-jr/

Izak Dahora

domingo, 6 de março de 2011

Maria Clara é Carnaval - a escola de samba e a escola de teatro.


Creio que o primeiro lugar a me mostrar a importância da simplicidade no teatro foi o Tablado. Sua mentora e realizadora Maria Clara Machado plantou a semente que dá frutos a olhos vistos já há muito tempo – em 2011 faz sessenta anos. São diversas as gerações de atores que se formam naquela escola, situada na rua Lineu de Paula Machado – não esqueço! -, que se orgulha de não ser profissionalizante, e sim amadora, com tudo que esta palavra tem direito, inclusive o amor, contido no radical da palavra.

Eu saía de São Gonçalo para o Jardim Botânico, onde fica o Tablado, pegava três conduções para ir e mais três para voltar, atravessava a Baía de Guanabara. Devia ter meus dezesseis anos. Ía disposto, retornava cansado tamanha a distância entre casa e teatro.

O Tablado era algo tão distante para mim, do ponto de vista geográfico, e também do sócio-cultural, que lembro que no início achava que jamais conseguiria me enturmar com aquela galera da Zona Sul. Hoje ainda continuo mais para suburbano do que qualquer outra coisa – por convicção -, porém aquela galera que frequentava as aulas da professora Bia Junqueira às cinco da tarde daquelas segunda-feiras me ensinou coisas valiosas. E a maior delas foi a ser mais simples para o trato com o palco, um aprendizado para a vida toda. Pois fazer teatro é ter um corpo sobre um palco diante de um público. Daí já se pode ter espetáculo, porque isso é, na verdade, o teatro. O quem vêm para além disso já é acessório. Fazer teatro é pisar descalço no chão e sentir a força que vem do centro da Terra; é permitir-se ao encontro com o outro no suor e na saliva, como diz Fernanda Montenegro; é questionar-se a todo momento (como cacoete de ofício) acerca das indagações infindas que um intérprete tem que se fazer para elaborar uma personalidade específica (que é o personagem)...e perceber que para isso precisa questionar a sua própria visão e conduta diante do mundo e da pessoas.

Sem esse despojamento, sem essa disponibilidade e entrega não há teatro, não há arte, aliás.
Sempre que a gente pesa demais, "sofistica" e até "eruditiza" demais pensando alcançar uma profundidade fica mais distante a interação clara, que envolve as pessoas, a começar pela própria trupe em cena, porque o teatro funciona quando é feito junto e quando há um equilíbrio e uma divisão generosa entre o que se pensa e o que se sente e quem faz o quê, caso contrário o que se assiste é a cenas lamentáveis de narcisismo.

A linguagem dos grandes artistas e criadores costumam mesmo carregar simplicidade, que parece ser a senha do infinito mundo de sonhos, ideias e valores contidos na arte.

No Tablado tive a oportunidade de ver e conhecer algumas pessoas ricas – sem meias palavras - com um comportamento absolutamente simples, humilde e devotado ao fazer teatro. Nesse momento o preconceito de suburbano receoso de ser destratado pela elite que eu tinha foi por terra – ainda que o Tablado seja um escola muito integrada a um universo Zona Sul de ser: extensão de amizades familiares, continuação de jogos no play dos condomínios do bairro ou das praias do Leblon e de Ipanema e da Lagoa.

Talvez mais do que teatro ou profundidade estética, simplicidade tenha sido e seja o que de melhor o Tablado proporcionu e proporciona à formação de jovens de diferentes gerações. Eu me sinto orgulhoso de hoje ver que passei por aquela escola, por aquele tablado.

Obs.: Neste carnaval, as obras de Maria Clara são enredo da Unidos do Porto da Pedra, outra escola que faz parte da minha história. Falarei mais dessa ligação nos próximos textos. Por ora digo que, com muita alegria e disposição, sairei no último carro alegórico do desfile da Porto, escola de São Gonçalo, onde nasci e fui criado – no bairro do Porto da Pedra. No carro sobre "O cavalinho azul", história singela sobre o poder da imaginação e da esperança que existe na criança – e de modo tão supreendentemente simples!



Izak Dahora

"Black Swan" - o retrato contraditório e sublime em como o artista pode se autodestruir.


Sempre admirei os bailarinos. Talvez nenhum artista tenha em seu ofício relação tão próxima com a liberdade do corpo como eles. Seus saltos, elasticidade, disponibilidade no espaço/tempo são de uma poesia fascinante, comevente e até misteriosa. Como os acrobatas e os trapezistas, os bailarinos são provavelmente os únicos seres do palco de que tenho conhecimento capazes de provar da sensação de "voar" a partir de si mesmo, dos próprios movimentos, seres alados, quase como pássaros.

Porém mais do que isso, digo que eles sempre tiveram o meu respeito, pois tanta leveza guarda rigor  extremo e também desgaste inevitável. A rotina e a dieta de quem dança é de uma disciplina metódica, minimalista, podendo ser tão rígida quanto algo militar – e de tanto trabalho, de apacidade de concentração num esforço repetitivo, de tantas dores e calos o resultado a que se assiste normalmente é de simplicidade e delicadeza. O balé prova – inclusive aos atores, dos quais faço parte, que o trabalho do artista envolve o sonho mas que para ser realizado é muito mais físico do que o contrário. Reforça a crença de que não existe arte sem uma forma, sem um corpo, sem um tônus vivo e concreto que se apresente, pois é pela carne que se trocam e se transmitem todas as emoções e ideias. A dança faz-nos ter a dimensão da necessidade e da vitalidade material da nossa condição – contradizendo Platão. Como ator que sou digo que poucos são os atores que levam a profissão com a seriedade de treinamento e reciclagem como os bailarinos. Normalmente perdem-se no glamour atroz das capas de revista e exposição midiática da tv - que são veículos importantes mas não não Arte íntegra. Os atores (grande parte) ainda não treinam o seu instrumento. Por isso, o povo do balé exemplo - e eu tento me inspirar sempre neles.

Mas sobre este "Cisne Negro" a que se pode assistir nos cinemas e que merecidamente , na minha opinião, faturou o Oscar  nas categorias diretor (Darren Aronofski) e atriz (Natalie Portman), digo que saí do cinema sem fôlego, atônito, me sentindo "mal". 
Mas um mal que no fim faz bem, porque o mal do descentramento causado por uma grande obra de arte. Trabalho extremamente competente, impecável de Natalie Portman numa narrativa por vezes até perversa no sofrimento de Nina, a protagonista, além de surpreendente e que, para além de todo e qualquer adjetivo que se lance ao filme, se assume como linguagem cinematográfica, por excelência: nossos sentidos se confundem à mágica da dança e da música, ao rigor desmesurado de muitos dos que buscam irrefreavelmente a perfeição da grande arte e comprometem a própria vida, à tensão permanente e às neurores da bailarina. É uma experiência profunda, emocional e fisicamente, já que Aronofski lança o espectador na mente confusa da personagem e faz de cada surpresa ou descoberta da mesma um susto para quem assiste. De modo que tudo é sentido na pele através de jogos de câmera "dançantes" e inquietos, fotografia tão sombria e sinistra quanto a vida de Nina a partir do personagem Cisne Negro emsua vida e da música. 

Creio que vale dizer que para quem é artista a experiência de assistir a esse filme é  especialmnete catártica, pois, ao contrário do que muitos dizem a respeito de Cisne Negro, concordo não ser preciso dilacerar a própria vida  em nome de uma estética ou da glória mas penso que o que se assiste  neste longa é um  retrato possível do que o artista pode acabar passando. Afinal, o que artista quer é agradar, e nisso impõem-se sacrifícios e renúncias imensuráveis - por muitas vezes vende-se por quase nada chantageada pela mente de diretores excêntricos, "sanguessugas" e megalômanos. 
A criação mexe com o psiquismo do artista e este pode ver-se de repente totalmente perdido. Nosso ofício lida com aceitação e rejeição, e uma opinião pode levar-nos ao mais profundo desampraro. É preciso ter cuidados com o artista. A linha entre o "surto" e delírio criativo e a loucura é tênue, dessa área fronteiriça pode brotar grandes obras como também a inércia "vegetativa" de uma frustração particular. É a esta fragilidade que o artista estará sempre exposto.   

E o filme deixa pulsante também uma questão que me ocorreu ainda durante a sua exibição: não seria o universo das bailarinas tão ou mais cruel que o hoje tão criticado mundo das passarelas? Não que isso redima a cobrança sobrehumana feita sobre as top models, mas o agravo para o balé seria o fato de a dança e seu rigor existem há muito mais tempo, tornando neuróticas as mentes de muitas jovens em realidade de competitividade invejas mútuas e redes de intrigas pela insegurança fustigada pelo meio que quer intérpretes cada vez o que se quer: inclusive servir de objeto sexual a quem pode conceder oportunidades - no caso do filme o diretor da companhia.
 
No ano passado, nós, os apaixonados por arte e por cinema, fomos agraciados com O segredo dos seus olhos que descrevo como belíssimo. E agora Cisne Negro , permitindo-me ao simplismo das adjetivações considero sublime. A imagem crepuscular da bailarina falecendo na última cena - e que intuitivamente me remeteu num certo sentido à personagem Norma Demund, a atriz-diva decadente de Crepúsculo dos Deuses -é paradoxal: mostra a ascenção para a glória ao fim do movimento final de peça para pouco intérpretes no mesmo tempo em que é ocaso, uma vez que a personagem deixa claro que não há mais fôlego para a vida. É o salto do triunfo e a descida à morte. Ao mesmo tempo. Um movimento paradoxal que desafia a própria lógica.

Na contradição da solidão perigosa do artista é que vejo onde está o grande mérito de Cisne Negro. Nesse caos existencial da personagem e formal da estética fragmentada e trepidante   sua eloquência.







Izak Dahora

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Aretha e areté.



Para quem é um aficcionado por mitologia grega como eu, tudo é motivo pra ler, reler e vasculhar os sentidos possíveis que emanam daqueles mythos ou, mais simplesmente, daquelas histórias. Arquétipos e símbolos são muitas vezes as senhas para um entendimento mais amplo da existência, e das passagens muitas vezes fantásticas e metafóricas da mitologia é possível extrair grandes ensinamentos, como ocorre na leitura da própria bíblia. E se a vida e o mundo se transmutam ao longo dos tempos, sua essência não parece diferir em muita coisa, e isto se comprova na torrente das paixões humanas que sempre nos tomam e arrebatam desde os gregos e suas histórias e desde antes deles mesmos.

As descobertas de etmologia (história ou origem gramatical de termos e nomes, seus elementos constituivos e sua evolução) também são um prato cheio para quem desfruta mitologia. A minha última descoberta foi na verdade confirmação de um sentido que já tinha aprendido lendo alguma publicação sobre Grécia Antiga há muito tempo.

Aretha - esse nome não me saía da mente! E algo me dizia que eu já conhecia o que esse nome significa etmologicamente.

Lembrei, então, que Aretha tem o mesmo radical de areté, atributo dos antigos herois gregos, além da mesma sonoridade cuja tônica aberta/vocálica remete instantâneamente à língua de Homero. Fui à fonte e lá estava:

"Os gregos reverenciavam os herois (...), homens que haviam realizado feitos extraordinários e que, uma vez mortos, haviam se transformado em deuses. O mais famoso dos herois gregos foi Hércules. O heroi é o homem que possui areté, palavra grega que significa a excelência humana (a força, a destreza, a coragem, o espírito guerreiro). Somente os aristocratas teriam areté . O homem nobre era aquele que tanto na vida privada quanto na pública , era regido pela coragem, pela força e por qualidades e normas de conduta que normalmente não são exigidas ao homem comum"

Já em dicionários de significados de nomes na internet pude ver que Aretha é descrito como virtude ou dignidade e na mesma procedência grega. O que está absolutamente dentro do contexto por mim antes lembrado e pesquisado.

Como já disse, tudo é motivo para que eu mergulhe numa leitura ou numa boa discussão sobre mitologia e Grécia antigas. Sendo que, desta vez, o motivo étymos (verdadeiro) da minha busca foi a origem do nome de uma moça linda que conheço.E ela realmente mereceu distinção nos meus pensamentos, não é um ser comum... Tem areté.



Izak Dahora

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Diegues disse.




Assistindo aos extras do dvd do filme 5x Favela uma das várias coisas interessantes faladas pelos mais experientes em encontros e oficinas com os jovens cineastas e técnicos do filme me marcou e, por isso, pincei para expor aqui.

Disse Cacá Diegues, um dos produtores do filme - e "padrinho" e "benfeitor" do longa, no  melhor sentido do termo - aos novos diretores sobre como dirigir atores:

"Ator é que nem gente. Tem um que é mais chegado, outro que é mais distante; há aquele que fala muito, outro que é mais frio; um mais emoção, outro mais racional...E o importante (em outras palavras, pois já não me recordo na íntegra) é entender como cada um funciona para que se extraia da biografia desse ator aquilo de que o personagem e o filme precisam (...)".

É claro que muitos diretores já teceram comentários sobre esse cuidado necessário com o intérprete - uns de verdade, muitos por  vaidade simulando generosidade, outros tantos por força do clichê sem muito bem o ator, de fato, compreender... Mas acho que vale registrar tais palavras pois um diretor - e agora é um ator que fala - consciente de que ator é ser humano, portador de especifidades múltiplas, qualidades que o tornan singular (na vida e na cena) e que divide com o diretor a construção do todo, sem hierarquias, causa  sempre satisfação e, por vezes, até mesmo espanto. E Diegues, marxistamente inspirado, invariavelmente se mostra bastante franco e politizado e não precisa, a essa altura do campeonato, fingir pensar o que não pensa.

É isso mesmo Cacá, ator é que nem gente.



 Izak Dahora

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Confidência da febre.

Tenho na gaveta – ou melhor, nos arquivos do meu computador – entre outros tantos projetos, uma peça e um romance. Na verdade ainda mais o sonho em tentativa de andamento de uma coisa e outra. Devo trabalhar neles há uns três anos desde que tive as ideiais iniciais. E as dificuldades têm sido duas: tempo para me debruçar sobre eles, já que tenho que trabalhar e honrar os compromissos da vida adulta e porque faltam algumas vezes ideias para solucionar questões que eu mesmo crio nas minhas ficções.

E no meio disso tudo tem a música, meus poemas, a vida...

Talvez me falte também maturidade e minhas tão sonhadas obras tenham que esperar mais outros três anos, quem sabe? Edney Silvestre não teve que trabalhar e pesquisar, simultaneamente à atribulada vida de jornalista, vinte anos até que concluísse o reconhecido “Se eu fechar os olhos agora”? Sua espera e trabalho vieram, inclusive, premiados, de um prestigioso Prêmio Jabuti 2010. E assim for a com outros tantos escritores e outras tantas obras.
Compartilhei um pouco da minha febre criativa aqui no blog. E sei que isso não foi em vão: minhas ideias respirarão nessa espécie de work in progress. E o retorno dos que lerem essa confidência também encherão de ânimo e frescor meus projetos. Tenho certeza.



Izak Dahora.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Do que tenho lido: Nietzsche e a tragédia grega.

"(...) Para servir-nos da terminologia de Platão, poderíamos dizer, das figuras trágicas do palco helênico, mais ou menos isto: o único Dionísio verdadeiramente real aparece em uma pluralidade de figuras, sob a máscara de um herói combatente e como que emaranhado na rede da vontade individual. E assim que o deus ao aparecer, fala e age, ele se assemelha a um indivíduo que erra, se esforça e sofre: esse, em geral, aparece com essa precisão e nitidez épicas, isso é o efeito de Apolo, esse decifrador de sonhos, que evidencia ao coro seu estado dionisíaco por meio dessa aparição alegórica. Em verdade, porém, esse herói é o Dionísio sofredor dos Mistérios, aquele deus que experimenta em si o sofrimento da individuação, do qual mitos maravilhosos contam que, quando rapaz, foi despedaçado pelos Titãs e nesse estado é venerado como Zagreu: o que sugere que esse despedaçamento, em que consiste propriamente a paixão dionisíaca, equivale a uma transformação emar, água, terra e fogo, e que portanto temos de considerar o estado da individuação como a fonte e o primeiro fundamento de todo sofrimento, como algo repudiável em si mesmo. Do sorriso desse Dionísio nasceram os deuses olímpicos, de suas lágrimas os homens. Nessa existência como deus despedaçado, Dionísio tem a dupla natureza de um demônio horripilante e selvagem e de um soberano brando e benevolente. Mas a esperança dos epoptes era um renascimento de Dionísio, que agora pressentimos como o fim da individuação: era para esse terceiro Dionísio vindouro que soava o fervoroso canto de júbilo dos epoptes. E somente nessa esperança há um clarão de alegriano semblante do mundo dilacerado, destroçado em indivíduos: assim como o mito o mostra na imagem de Deméter mergulhada em eterno luto, que pela primeira vez se alegra ao lhe dizerem que pode dar à luz Dionísio mais uma vez. Nas intuições mencionadas temos já todos os componentes de uma visão do mundo profunda e pessimista e com eles, ao mesmo tempo, a doutrina da tragédia que está nos Mistérios: o conhecimento fundamental da unidade de tudo que existe, a consideração da individuação como o primeiro fundamento do mal, a arte como a alegre esperança de que o exílio da individuação pode ser rompido, como o pressentimento de uma unidade restaurada. (...)"

                                        Friedrich Nietzsche - "O Nascimento da tragédia no espírito da música".