quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

A arte é para todos? Alguma reflexão sobre a condição política e social de arte e cultura no Brasil a partir de um jovem engraxate e sobre o gosto estético


Cruzando a Praça Floriano, Cinelândia, altura do bar Amarelinho, eu ía apressado, correndo em ritmo de dezembro e fugindo do sol que escaldava, rumo à já não sei mais qual compromisso. Uma voz do nada apregoou:
- Teatro para todos?
De súbito não entendi e, por isso, olhei para trás, mas sempre em marcha. Notei, então, que havia na extremidade oposta a mim e à voz, próxima ao meio-fio que beija a onipotente Avenida Rio Branco e onde encostam parte da numerosa frota de táxis e ônibus da frenética cidade, cabines improvisadas da já instituída campanha realizada pela Associação dos Produtores de Teatro do "Teatro para todos", que acontece normalmente no último mês do ano e vende ingressos das peças de praticamente todo o circuito teatral carioca a preços simbólicos (mais que simbólicos até) ou populares, podendo chegar a cinco reais, na intenção de revitalizar, aproximar e renovar o público de teatro.
Notei a voz talvez mais pela aparente falta de nexo da pergunta lançada no meio da praça do que pelo impacto físico causado pelo semi-grito, afinal de gritos vive uma metrópole, a "Babel contemporânea" ou a versão atualizada das feiras antigas e medievais em que abundavam mascates e figuras mercenárias tomando de assalto (às vezes literalmente) os passantes, com sedução na voz a revivendo a atemporalidade dos mitos das "Mil e uma noites". Mas a minha voz, digo a voz que me assaltou da correria que nos aflige a todos e nos faz correr sempre como que atrás de um grande prejuízo, além de denunciar uma atitude performática, erigiu-se no ar com requinte de ironia, e com os trejeitos do corpo - de genuína malemolência e malandragem carioca - resultava de legítima provocação, o que pude constatar quando olhei para trás, sempre marchando.
Em fração de segundos a "ficha caiu" pois num golpe de olhar pude, aí então, perceber a presença dos guichês com placas "teatro para todos". A voz do do rapaz de seus vinte e alguns anos fazia, inteligentemente, menção de olhar e de projetar a voz aos guichês da campanha.
Respondi-lhe:
- Sim, o teatro é para todos - com certa alegria na minha voz, pois como sou do teatro e acho a campanha uma politizada iniciativa da classe, senti-me estimulado a dizer, ante sua ironia, que "sim, o teatro é para todos", sempre marchando.
Mas o rapaz foi mais longe do que eu. Em tão poucos segundos do fortuito encontro ao longo da praça, pensei que ele fosse seguir na "brincadeira"  até o ponto que a manifestação de uma improvável consciência crítica sua se diluísse na previsibilidade do humor corriqueiro. Mas a micropausa que se seguiu à sua provocação me fez ver, ou melhor, rever, que o teatro, assim como a arte no Brasil ainda e de um modo geral, não é mesmo para todos, que o acesso aos bens simbólicos nesse país não é coisa que graceja em cada esquina.
De onde saíra aquele quase moleque com tamanha agudeza? Sua pergunta lançada ao ar no espaço da praça naquele típico tom de quem já pergunta sabendo a resposta negativa, cético, niilista, oriundo, provavelmente, de quem já deve, em não muitos anos de vida ter sentido na carne as desigualdades históricas da sociedade brasileira, agora reflito, agiram com uma argúcia praticamente socrática de investir na campanha (repito, importante da classe teatral para amenizar um problema cultural do país) um sentido de indagação e descrença sobre um panorama que transcende a própria temporada popular dos teatros nesse fim de ano. Em poucos segundos, era como se ele estivesse na espera de alguma resposta mais profunda que mostrasse a ele que sua provocação era infundada. E não era.
Por que teatro a preços acessíveis em no máximo quatro semanas do ano e não durante o ano inteiro? É  sabido que o teatro é uma arte, assim como várias outras, que geram muitos custos, mas por que o governo não subvenciona, então, parte desses gastos continuamente para que a maioria da população possa ter acesso à cultura sempre? Impossível? Inviável? Esteve aqui no Brasil há pouco tempo o Théâtre du Soleil que não nos deixa mentir, companhia tradicionalmente mantida pelo Estado francês, mesmo, hoje, em tempos de crise econômica devastando a Europa. E o Brasil surfando em relativa prosperidade e emergência econômica não poderia fazer o mesmo? Caímos em dois problemas de sempre, então, para nós: a corrupção seguida de impunidade, que assola o país de cima para baixo, do Congresso às feiras de ruas e praças, das Capitanias Hereditárias ao nepotismo praticado dentro do gerenciamento do bem comum, da rés-pública. Porque num país onde se devia tanta verba, onde se leva dinheiro público na cueca, onde se "lava" dinheiro, financiar parte do ingresso do teatro ou de qualquer outra manifestação cultural que, decididamente, participa da formação de cidadãos melhores, não seria nada oneroso. O que falta não é recurso, é amar o Brasil e sua gente, respeitá-los.
Nossa mentalidade política ainda não é capaz de enxergar arte e cultura como artigos de primeira necessidade na formação de nossa cidadania. Aliás,  é interessante a ignorância e falta de sonho das massas. E olha que o país evolui (na economia e na instituição da democracia, por exemplo) a olhos vistos. Mas ainda somos mesquinhos como sociedade.
Para além de uma campanha sazonal de preços populares - que devo aqui dizer de novo, não considero má, vejo-a abrindo horizonte para muitos, inclusive para que nós artistas sobrevivamos - e da própria subvenção estatal, chego a pensar que o cidadão precisa mesmo é ter condições mínimas geradas por um projeto de país minimamente decente de lhe assegurar acesso a bens fundamentais como, por exemplo, emprego, cujo salário tenha realmente poder de alcance para dar conta das necessidades  poder ir ao teatro com a família nos fins de semana tranquilamente. Por que não? "A gente não quer só comida", já disseram os Titãs em época de inflação galopante.
Eu sei que é mais fácil falar, ainda mais em tempos de crise internacional em que se avolumam os descontentamentos com a evolução neoliberal que excluiu e exclui tantos. Por isso, pode acreditar, tento sempre ver os dois lados de tudo e buscar a moderação.
E boa parte dessa reflexão passa pela minha cabeça enquanto cruzava depressa a Praça Floriano.
Sempre em marcha, ainda ouviria do rapaz, depois que eu, intrometido e defensor da causa da arte e do teatro, lhe disse "sim, o teatro é para todos" tentando incutir nele algo para além da própria campanha, que "Teatro é chato. Já fui. Gosto não".
                 O que levei no bom humor e repliquei:
- Não é não, rapá! Você que deve ter assistido à peça errada. Teatro é bom! - disse a última frase com toda a exclamação que podia saltar do meu peito. (Até porque, para não gostar ele precisa do acesso aos repertórios. Gosto se constrói).

                 E fui.
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Algum tempo depois, veio meu modo dialético, fiquei pensando: "Mas será que de repente ele já não foi mesmo ao teatro? E será que percebeu, nessa experiência,  que realmente que não gosta? Não será isso é um direito seu?". Afinal tenho amigos que não gostam, preferem cinema, por exemplo, gente culta, embasada. Embora eu ache teatro o máximo, conheço pessoas que curtem um cinema cabeça e não uma peça de teatro.
De repente, não será  seu canal de conexão criativa com o mundo uma outra forma de arte - música, grafite, sei lá? Ou mesmo um esporte? Ou qualquer outra atividade simbólica desempenhada honestamente? E aí, então, pergunto: será mesmo a arte para todos? Serão todos para a arte? Embora seja difícil existir alguém que não goste ao mínimo de música, muita gente não gosta teatro, assim como não gosta de cinema e por aí vai. E isto revela que antes até da questão social do acesso, há a afinidade, o gosto. (Mas, insisto, é sempre melhor não gostar depois de se poder apreciar).
Só escrevi este apêndice para deixar claro que, embora ame e defenda o teatro e saiba da sua elitização social que faz muitos dizerem que não gostam dele mais porque nunca o puderam apreciar de forma íntegra e ampla, respeito quem possa afirmar que não gosta.

Izak Dahora

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