Cruzando a Praça Floriano, Cinelândia, altura do bar Amarelinho, eu ía
apressado, correndo em ritmo de dezembro e fugindo do sol que escaldava, rumo à
já não sei mais qual compromisso. Uma voz do nada apregoou:
- Teatro para todos?
De súbito não entendi e, por isso, olhei para trás, mas sempre em
marcha. Notei, então, que havia na extremidade oposta a mim e à voz, próxima ao
meio-fio que beija a onipotente Avenida Rio Branco e onde encostam parte da
numerosa frota de táxis e ônibus da frenética cidade, cabines improvisadas da já
instituída campanha realizada pela Associação dos Produtores de Teatro do
"Teatro para todos", que acontece normalmente no último mês do ano e
vende ingressos das peças de praticamente todo o circuito teatral carioca a
preços simbólicos (mais que simbólicos até) ou populares, podendo chegar a
cinco reais, na intenção de revitalizar, aproximar e renovar o público de
teatro.
Notei a voz talvez mais pela aparente falta de nexo da pergunta lançada
no meio da praça do que pelo impacto físico causado pelo semi-grito, afinal de
gritos vive uma metrópole, a "Babel contemporânea" ou a versão
atualizada das feiras antigas e medievais em que abundavam mascates e figuras
mercenárias tomando de assalto (às vezes literalmente) os passantes, com
sedução na voz a revivendo a atemporalidade dos mitos das "Mil e uma
noites". Mas a minha voz, digo a voz que me assaltou da correria que nos
aflige a todos e nos faz correr sempre como que atrás de um grande prejuízo,
além de denunciar uma atitude performática, erigiu-se no ar com requinte de
ironia, e com os trejeitos do corpo - de genuína malemolência e malandragem
carioca - resultava de legítima provocação, o que pude constatar quando olhei
para trás, sempre marchando.
Em fração de segundos a "ficha caiu" pois num golpe de olhar
pude, aí então, perceber a presença dos guichês com placas "teatro para
todos". A voz do do rapaz de seus vinte e alguns anos fazia,
inteligentemente, menção de olhar e de projetar a voz aos guichês da campanha.
Respondi-lhe:
- Sim, o teatro é para todos - com certa alegria na minha voz, pois como
sou do teatro e acho a campanha uma politizada iniciativa da classe, senti-me
estimulado a dizer, ante sua ironia, que "sim, o teatro é para
todos", sempre marchando.
Mas o rapaz foi mais longe do que eu. Em tão poucos segundos do fortuito
encontro ao longo da praça, pensei que ele fosse seguir na
"brincadeira" até o ponto que
a manifestação de uma improvável consciência crítica sua se diluísse na
previsibilidade do humor corriqueiro. Mas a micropausa que se seguiu à sua
provocação me fez ver, ou melhor, rever, que o teatro, assim como a arte no
Brasil ainda e de um modo geral, não é mesmo para todos, que o acesso aos bens
simbólicos nesse país não é coisa que graceja em cada esquina.
De onde saíra aquele quase moleque com tamanha agudeza? Sua pergunta
lançada ao ar no espaço da praça naquele típico tom de quem já pergunta sabendo
a resposta negativa, cético, niilista, oriundo, provavelmente, de quem já deve,
em não muitos anos de vida ter sentido na carne as desigualdades históricas da
sociedade brasileira, agora reflito, agiram com uma argúcia praticamente
socrática de investir na campanha (repito, importante da classe teatral para
amenizar um problema cultural do país) um sentido de indagação e descrença
sobre um panorama que transcende a própria temporada popular dos teatros nesse
fim de ano. Em poucos segundos, era como se ele estivesse na espera de alguma
resposta mais profunda que mostrasse a ele que sua provocação era infundada. E
não era.
Por que teatro a preços acessíveis em no máximo quatro semanas do ano e
não durante o ano inteiro? É sabido que
o teatro é uma arte, assim como várias outras, que geram muitos custos, mas por
que o governo não subvenciona, então, parte desses gastos continuamente para
que a maioria da população possa ter acesso à cultura sempre? Impossível?
Inviável? Esteve aqui no Brasil há pouco tempo o Théâtre du Soleil que não nos
deixa mentir, companhia tradicionalmente mantida pelo Estado francês, mesmo,
hoje, em tempos de crise econômica devastando a Europa. E o Brasil surfando em
relativa prosperidade e emergência econômica não poderia fazer o mesmo? Caímos
em dois problemas de sempre, então, para nós: a corrupção seguida de
impunidade, que assola o país de cima para baixo, do Congresso às feiras de
ruas e praças, das Capitanias Hereditárias ao nepotismo praticado dentro do
gerenciamento do bem comum, da rés-pública. Porque num país onde se devia tanta
verba, onde se leva dinheiro público na cueca, onde se "lava"
dinheiro, financiar parte do ingresso do teatro ou de qualquer outra
manifestação cultural que, decididamente, participa da formação de cidadãos
melhores, não seria nada oneroso. O que falta não é recurso, é amar o Brasil e
sua gente, respeitá-los.
Nossa mentalidade política ainda não é capaz de enxergar arte e cultura
como artigos de primeira necessidade na formação de nossa cidadania.
Aliás, é interessante a ignorância e falta
de sonho das massas. E olha que o país evolui (na economia e na instituição da
democracia, por exemplo) a olhos vistos. Mas ainda somos mesquinhos como
sociedade.
Para além de uma campanha sazonal de preços populares - que devo aqui
dizer de novo, não considero má, vejo-a abrindo horizonte para muitos,
inclusive para que nós artistas sobrevivamos - e da própria subvenção estatal,
chego a pensar que o cidadão precisa mesmo é ter condições mínimas geradas por
um projeto de país minimamente decente de lhe assegurar acesso a bens
fundamentais como, por exemplo, emprego, cujo salário tenha realmente poder de
alcance para dar conta das necessidades
poder ir ao teatro com a família nos fins de semana tranquilamente. Por
que não? "A gente não quer só comida", já disseram os Titãs em época
de inflação galopante.
Eu sei que é mais fácil falar, ainda mais em tempos de crise
internacional em que se avolumam os descontentamentos com a evolução neoliberal
que excluiu e exclui tantos. Por isso, pode acreditar, tento sempre ver os dois
lados de tudo e buscar a moderação.
E boa parte dessa reflexão passa pela minha cabeça enquanto cruzava
depressa a Praça Floriano.
Sempre em marcha, ainda ouviria do rapaz, depois que eu, intrometido e
defensor da causa da arte e do teatro, lhe disse "sim, o teatro é para
todos" tentando incutir nele algo para além da própria campanha, que
"Teatro é chato. Já fui. Gosto não".
O que levei no
bom humor e repliquei:
- Não é não, rapá! Você que deve ter assistido à peça errada.
Teatro é bom! - disse a última frase com toda a exclamação que podia saltar do
meu peito. (Até porque, para não gostar ele precisa do acesso aos repertórios.
Gosto se constrói).
E fui.
--------------------------------------------------------------------------
Algum tempo depois, veio meu modo dialético, fiquei pensando: "Mas
será que de repente ele já não foi mesmo ao teatro? E será que percebeu, nessa
experiência, que realmente que não
gosta? Não será isso é um direito seu?". Afinal tenho amigos que não
gostam, preferem cinema, por exemplo, gente culta, embasada. Embora eu ache
teatro o máximo, conheço pessoas que curtem um cinema cabeça e não uma peça de
teatro.
De repente, não será seu canal de
conexão criativa com o mundo uma outra forma de arte - música, grafite, sei lá?
Ou mesmo um esporte? Ou qualquer outra atividade simbólica desempenhada
honestamente? E aí, então, pergunto: será mesmo a arte para todos? Serão todos
para a arte? Embora seja difícil existir alguém que não goste ao mínimo de
música, muita gente não gosta teatro, assim como não gosta de cinema e por aí
vai. E isto revela que antes até da questão social do acesso, há a afinidade, o
gosto. (Mas, insisto, é sempre melhor não gostar depois de se poder apreciar).
Só escrevi este apêndice para deixar claro que, embora ame e defenda o
teatro e saiba da sua elitização social que faz muitos dizerem que não gostam
dele mais porque nunca o puderam apreciar de forma íntegra e ampla, respeito
quem possa afirmar que não gosta.
Izak Dahora
Nenhum comentário:
Postar um comentário