segunda-feira, 28 de novembro de 2011

A irritação da espera, uma velha sábia e quarenta minutinhos mágicos


Já não me lembro ao certo como iniciou-se a nossa conversa dentro daquele voo cujo atraso já avançava mais de uma hora de espera. E isto numa simples ponte-aérea, em parâmetros já instituídos não operantes de uns tempos para cá no nosso caos infra-estrutural e aéreo de país-sede de Copa e Olimpíadas... (Meu Deus, o que é que ainda encararemos até esses eventos em aeroportos como Congonhas, Tom Jobim, Guarulhos, Santos Dumont...?).

Sentei numa das poltronas localizadas na parte inicial do avião, diferentemente da maioria dos colegas que vinham comigo do mesmo evento, o Trofeu Raça Negra 2011. Era a minha vontade de, assim que o avião aterrisásse, eu pudésse me livrar o mais rápido possível da aventura que é voar hoje no Brasil. Ao meu lado, na poltrona do meio, estava um senhora num traje não muito frequente em pessoas da sua idade: um chapéu panamá, jaqueta vermelha (para abrigar-se da baixa temperatura paulistana), calça jeans já bem desbotada e um par de tênis. Agora recobro pela memória que no princípio do nosso bate-papo (que viria a ser iluminado) fiz menção sobre seu chapéu a la Tom Jobim. Ela me disse que vinha de Florianópolis após passeio a cidades do interior do Chile e que fizera escala na capital catarinense mais por insistência dos amigos do sul do país. Tudo com muita leveza e sem aborrecimentos, diferentre de mim, todo o fastio, pelo atraso do voo, pelo sono da noite anterior mal dormida, por minhas revistas (possibilidades atraentes de distração) terem ficado na mala despachada por insistência de um funcionário da companhia aérea e por outras cositas que não vale a pena ressuscitar aqui.

Muito vívida, Dona Arminda, que só depois, no fluxo da conversa, fui saber que assim se chamava, perguntou-me de onde vinha aquela trupe animada de figuras de pele negra da qual eu fazia parte. Devo dizer que ela em nenhum momento foi preconceituosa ou exerceu discrimanação racial. Percebeu, na verdade, a relação entre aqueles artistas que conversavam enquanto entravam no avião.

Disse a ela de onde vínhamos, expliquei a natureza do evento e a entidade mantenedora, respectivamente, a promoção da cultura negra e de seus fazedores e a Universidade UniPalmares, da cidade de São Paulo. Dona Arminda revelou ter admiração pela colega e atriz Elisa Lucinda, uma das integrantes da trupe, lembrando de uma peça sua que assistira. Perguntei, então, se não queria conhecê-la depois, já no Santos Dumont, no Rio, prometendo mediar o encontro entre artista e fã, mas a senhora, muito ética e discreta, disse-me que os artistas também tem o direito de descansarem e não serem abordados em circunstâncias como aquela. Achei um pouco exagerado, insisti em promover o encontro entre as duas, mas ela se manteve na mesma posição e eu, afinal, compreendi.

De repente, parecia não existir mais assunto e que haveria entre nós aquele vácuo sepulcral e constrangedor que costuma ocorrer entre dois indivíduos que dividem assentos próximos num vagão de metrô, num banco de ônibus ou em poltronas de avião. Foi assim na ida para São Paulo... Até quando o sujeito me fez a gentileza de repassar as embalagens do meu lanche que à comissária, permaneceu calado, como que acelerando o processo para que não fosse incomodado na música que ouvia no seu i-fone. E quando eu fazia fotos da paisagem vista pela janela ao aterrissar, parecia desaprovar minha ação, com ar de superioridade – devia me considerar um idiota, menos assíduo viajador do que ele...

Ao voltar o olhar para Dona Arminda eu a percebi comovente: pequenina, o rosto ainda menor quase todo dentro do chapéu, com a mãozinha direita apoiando o queixo como que tentando dormir mas sem conseguir, provavelmente se sentindo só... Achei que queria conversar mais e que eu de repente a fiz pensar que ela estava me atrapalhando. Então agora eu foi quem "puxou" assunto:

  • Dormiu?
  • Não.
  • Ãhh, porque eu não consigo dormir dentro de ônibus, táxi, muito menos de avião.
  • Também não...
  • Mas a senhora veio de onde?
E então ela me contou o que já revelei no início desta crônica. Depois, comentou que a vida de artista deveria ser bem difícil, instável e sem o glamour que as pessoas costumam ver nessa profissão. Confirmei sua especulação mas acrescentei que os prazeres de estar num palco recompensam toda nossa luta.

Para não deixar o bate-papo morrer, aproveitei o momento em que o aeroplano alçava seu voo e revelei que viajar de avião é uma coisa que me deixa sempre um pouco tenso, principalmente quando decola e quando encara turbulências. E com a fragilidade do nosso serviço aéreo então...

  • Ih, mas de Florianópolis pra cá, peguei muito mais turbulência – minimizou ela com naturalidade.

A senhora me disse ainda que, nesses casos, a gente deve mentalizar uma luz branca sobre o nosso destino de chegada e imaginar o contato, os abraços entre nós e as pessoas e as coisas queridas que nos esperam, agindo como se já estivéssemos "lá". "As pessoas não entendem que a força do pensamento é maior que tudo", me exortou, sem omitir que devemos ter cuidados, precauções na vida, é claro.

Se a companhia já me estava sendo agradável, senti que com estas palavras acima eu estava ao lado de uma pessoa muito especial e iluminada. Dona Arminda me falou da presença do pensamento positivo em sua vida. Perguntei se tinha religião, ela respondeu que de católica evoluiu com o tempo ao espiritismo, contou experiências de sua vida bastante pobre no início do casamento com o ex-marido, suas ocupações antes e depois da aposentadoria etc etc etc. Contou-me que começou no serviço público servindo cafezinho e terminou advogada, mesmo numa época de opressão sobre as mulheres. Lembrei de meu avô falecido recentemente, de sua história de superação, saindo da roça, alfabetizando-se aos dezoito anos e tornando-se médico veterinário anos depois. Fiquei emocionado. Contei a ela.

Mas, na verdade, eu só queria ouví-la. Até o momento em que a senhora pediu para que eu falasse um pouco de mim. Não costumo - nem mesmo tenho o gosto- de falar de coisas muito pessoais. Exagero meu fruto do medo de ser narcisista e de meu modo encimesmado, desconfiado. Mas, depois de pensar um pouco, abri-lhe algo que me acabrunha constantemente: o descontentamento com a falta de critérios de avaliação (de crítica e de público) que observo em meu meio profissional, o receio de não reconhecerem o quanto estudo e me esrforço, o medo ter feito a escolha errada apesar do amor desmedido pelo ofício... as injustiças, as inseguranças geradas por ser artista no Brasil, especialmente.

E novamente Dona Arminda me veio com a bendita "luz branca":

  • Olha, não tenha pressa de nada, não fique ansioso e nem tenha medo. Apenas tenha em mente que você terá aquilo que deseja. Pense, no fundo, que você já é aquilo que busca... E verá que logo seu sonho vai se realizar! Certa vez meu ex-marido e eu não tínhamos um centavo para irmos trabalhar. Pedi a Deus com toda a fé e logo encontramos um dinheito no chão cujo valor pagava nossas passagens de ida – a volta, já seria outra história... Pode acreditar em mim! Pense positivo e todos, logo, também acreditarão no seu sonho!

Os aproximadamente quarenta minutos de ponte-aérea já estavam perto de terminar, mas nossa conversa fluía. Meu diálogo com as pessoas mais velhas, aliás, sempre foi muito intenso. Se sempre nutri um forte sentimento de inadequação ante às coisas (e às multidões) especialmente durante a adolescência, isso, porém, jamais o foi com os mais velhos. Não sei explicar. Uma moça, pelo porte delgado e pela conversa que mantinha do outro lado do corredor, de vez em quando parecia admirar a cumplicidade de velhos amigos que Dona Arminda e eu demonstrávamos.

Houve tempo para a pequena senhora solitária – cuja filha vive em Teresópolis com a família e o filho, no exterior - falar-me, ainda, da atividade como voluntária que exerce há dez anos numa fundação para cuidar de crianças com câncer. Contou como é bonto o trabalho de dar suporte às crianças (e seus pais) que vem de longe e que não possuem recursos para manter os gastos da doença e da distância; como é tocante ajudar a dar dignidade a vidas mesmo que no breve período que lhes resta; como que o primeiro contato de espanto com crianças muitas vezes já mutiladas por consequências da doença se converte imediatamente numa revalorização da vida nos seus aspectos mais simples em vez de reclamar, reclamar e reclamar de coisas tão pequenas quando se tem saúde.

Dona Arminda disse que sua fundação precisa de voluntários homens. Ficou o convite, entendi logo – por ser homem e por ser artista, o que estimula muito engajamento de outras pessoas. Trocamos e-mails e telefones. Mas pediu para que a procurasse antes do dia vinte de janeiro, pois sua próxima viagem será nesta data, rumo ao Leste Europeu. As maçãs enrugadas de seu rosto e seus lábios encheram-se de prazer ao falar das cidades já visitadas: Paris, Moscou, Atenas... e agora Praga, Viena, Budapeste...

Prometeu me enviar um e-mail com detalhes sobre a fundação e pediu para que eu fosse logo, "antes dela morrer". E eu disse "que é isso, Arminda!", pois ela já me pedira para não chamá-la nem de "dona" nem de "senhora". (Mas fiquei pensando, na verdade até agora penso se não foi um sinal a condição que me impôs: "antes de ela morrer...". Bom, ligarei ainda essa semana, se minha memória não falhar). Para arrematar aquele encontro com um tirada digna de um contista que calcula os passoa rumo ao momento final surpreendente de uma narrativa, ela mandou:

  • Você já voou de paraquédas?
  • Ãhn?
  • De paraquedas, eu disse?

Fiquei passado! Disfarcei o quanto pude para a boca não cair.

      • (Minha réplica foi o silêncio)
      • Pois faça. É o melhor remédio para se perder o medo. No início dar uma coisa no estômago, mas depois, é uma beleza, uma liberdade indescritível! Faça isso!

Eu, jovem velho, com tantos medos, e ela, idosa, tão disposta. E antes a própria chegou a perguntar se eu conhecia a diferença entre velho e idoso. Você já pode imaginar qual é. Idosa é a cronologia, irremediável; velha ou jovem pode ser a alma – independente de idade. Sinto que ela percebeu no seu íntimo que eu precisava ouvir tudo o que ela me disse. Um anjo enviado por Deus, a Dona Arminda!

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Percebi que apesar de toda aquela espera causada pela má adiministração corriqueira e das autoridades de nosso país que não aplicam como devem o dinheiro de nossos impostos, antes de embarcar naquele voo eu estava irritadiço demais, cansado demais daquilo e de outras cositas pelas quais não merecem que nos consumamos tanto, principalmente quando só se tem vinte e poucos anos... Eu stava "velho" e Dona Arminda me rejuvenesceu, me devolveu, na verdade, à idade eterna dos que sonham.


Izak Dahora

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