Já não me lembro
ao certo como iniciou-se a nossa conversa dentro daquele voo cujo
atraso já avançava mais de uma hora de espera. E isto numa simples
ponte-aérea, em parâmetros já instituídos não operantes de uns
tempos para cá no nosso caos infra-estrutural e aéreo de país-sede
de Copa e Olimpíadas... (Meu Deus, o que é que ainda encararemos
até esses eventos em aeroportos como Congonhas, Tom Jobim,
Guarulhos, Santos Dumont...?).
Sentei numa das
poltronas localizadas na parte inicial do avião, diferentemente da
maioria dos colegas que vinham comigo do mesmo evento, o Trofeu Raça
Negra 2011. Era a minha vontade de, assim que o avião aterrisásse,
eu pudésse me livrar o mais rápido possível da aventura que é
voar hoje no Brasil. Ao meu lado, na poltrona do meio, estava um
senhora num traje não muito frequente em pessoas da sua idade: um
chapéu panamá, jaqueta vermelha (para abrigar-se da baixa
temperatura paulistana), calça jeans já bem desbotada e um par de
tênis. Agora recobro pela memória que no princípio do nosso
bate-papo (que viria a ser iluminado) fiz menção sobre seu chapéu
a la Tom Jobim. Ela me disse que vinha de Florianópolis após
passeio a cidades do interior do Chile e que fizera escala na capital
catarinense mais por insistência dos amigos do sul do país. Tudo
com muita leveza e sem aborrecimentos, diferentre de mim, todo o
fastio, pelo atraso do voo, pelo sono da noite anterior mal dormida,
por minhas revistas (possibilidades atraentes de distração) terem
ficado na mala despachada por insistência de um funcionário da
companhia aérea e por outras cositas que não vale a pena
ressuscitar aqui.
Muito vívida, Dona
Arminda, que só depois, no fluxo da conversa, fui saber que assim se
chamava, perguntou-me de onde vinha aquela trupe animada de figuras
de pele negra da qual eu fazia parte. Devo dizer que ela em nenhum
momento foi preconceituosa ou exerceu discrimanação racial.
Percebeu, na verdade, a relação entre aqueles artistas que
conversavam enquanto entravam no avião.
Disse a ela de onde
vínhamos, expliquei a natureza do evento e a entidade mantenedora,
respectivamente, a promoção da cultura negra e de seus fazedores e
a Universidade UniPalmares, da cidade de São Paulo. Dona Arminda
revelou ter admiração pela colega e atriz Elisa Lucinda, uma das
integrantes da trupe, lembrando de uma peça sua que assistira.
Perguntei, então, se não queria conhecê-la depois, já no Santos
Dumont, no Rio, prometendo mediar o encontro entre artista e fã, mas
a senhora, muito ética e discreta, disse-me que os artistas também
tem o direito de descansarem e não serem abordados em circunstâncias
como aquela. Achei um pouco exagerado, insisti em promover o encontro
entre as duas, mas ela se manteve na mesma posição e eu, afinal,
compreendi.
De repente, parecia
não existir mais assunto e que haveria entre nós aquele vácuo
sepulcral e constrangedor que costuma ocorrer entre dois indivíduos
que dividem assentos próximos num vagão de metrô, num banco de
ônibus ou em poltronas de avião. Foi assim na ida para São
Paulo... Até quando o sujeito me fez a gentileza de repassar as
embalagens do meu lanche que à comissária, permaneceu calado, como
que acelerando o processo para que não fosse incomodado na música
que ouvia no seu i-fone. E quando eu fazia fotos da paisagem vista
pela janela ao aterrissar, parecia desaprovar minha ação, com ar de
superioridade – devia me considerar um idiota, menos assíduo
viajador do que ele...
Ao voltar o olhar
para Dona Arminda eu a percebi comovente: pequenina, o rosto ainda
menor quase todo dentro do chapéu, com a mãozinha direita apoiando
o queixo como que tentando dormir mas sem conseguir, provavelmente se
sentindo só... Achei que queria conversar mais e que eu de repente a
fiz pensar que ela estava me atrapalhando. Então agora eu foi quem
"puxou" assunto:
- Dormiu?
- Não.
- Ãhh, porque eu não consigo dormir dentro de ônibus, táxi, muito menos de avião.
- Também não...
- Mas a senhora veio de onde?
E então ela me
contou o que já revelei no início desta crônica. Depois, comentou
que a vida de artista deveria ser bem difícil, instável e sem o
glamour que as pessoas costumam ver nessa profissão. Confirmei sua
especulação mas acrescentei que os prazeres de estar num palco
recompensam toda nossa luta.
Para não deixar o
bate-papo morrer, aproveitei o momento em que o aeroplano alçava seu
voo e revelei que viajar de avião é uma coisa que me deixa sempre
um pouco tenso, principalmente quando decola e quando encara
turbulências. E com a fragilidade do nosso serviço aéreo então...
- Ih, mas de Florianópolis pra cá, peguei muito mais turbulência – minimizou ela com naturalidade.
A senhora me disse
ainda que, nesses casos, a gente deve mentalizar uma luz branca sobre
o nosso destino de chegada e imaginar o contato, os abraços entre
nós e as pessoas e as coisas queridas que nos esperam, agindo como
se já estivéssemos "lá". "As pessoas não entendem
que a força do pensamento é maior que tudo", me exortou, sem
omitir que devemos ter cuidados, precauções na vida, é claro.
Se a companhia já
me estava sendo agradável, senti que com estas palavras acima eu
estava ao lado de uma pessoa muito especial e iluminada. Dona Arminda
me falou da presença do pensamento positivo em sua vida. Perguntei
se tinha religião, ela respondeu que de católica evoluiu com o
tempo ao espiritismo, contou experiências de sua vida bastante pobre
no início do casamento com o ex-marido, suas ocupações antes e
depois da aposentadoria etc etc etc. Contou-me que começou no
serviço público servindo cafezinho e terminou advogada, mesmo numa
época de opressão sobre as mulheres. Lembrei de meu avô falecido
recentemente, de sua história de superação, saindo da roça,
alfabetizando-se aos dezoito anos e tornando-se médico veterinário
anos depois. Fiquei emocionado. Contei a ela.
Mas, na verdade, eu
só queria ouví-la. Até o momento em que a senhora pediu para que
eu falasse um pouco de mim. Não costumo - nem mesmo tenho o gosto-
de falar de coisas muito pessoais. Exagero meu fruto do medo de ser
narcisista e de meu modo encimesmado, desconfiado. Mas, depois de
pensar um pouco, abri-lhe algo que me acabrunha constantemente: o
descontentamento com a falta de critérios de avaliação (de crítica
e de público) que observo em meu meio profissional, o receio de não
reconhecerem o quanto estudo e me esrforço, o medo ter feito a
escolha errada apesar do amor desmedido pelo ofício... as
injustiças, as inseguranças geradas por ser artista no Brasil,
especialmente.
E novamente Dona
Arminda me veio com a bendita "luz branca":
- Olha, não tenha pressa de nada, não fique ansioso e nem tenha medo. Apenas tenha em mente que você terá aquilo que deseja. Pense, no fundo, que você já é aquilo que busca... E verá que logo seu sonho vai se realizar! Certa vez meu ex-marido e eu não tínhamos um centavo para irmos trabalhar. Pedi a Deus com toda a fé e logo encontramos um dinheito no chão cujo valor pagava nossas passagens de ida – a volta, já seria outra história... Pode acreditar em mim! Pense positivo e todos, logo, também acreditarão no seu sonho!
Os aproximadamente
quarenta minutos de ponte-aérea já estavam perto de terminar, mas
nossa conversa fluía. Meu diálogo com as pessoas mais velhas,
aliás, sempre foi muito intenso. Se sempre nutri um forte sentimento
de inadequação ante às coisas (e às multidões) especialmente
durante a adolescência, isso, porém, jamais o foi com os mais
velhos. Não sei explicar. Uma moça, pelo porte delgado e pela
conversa que mantinha do outro lado do corredor, de vez em quando
parecia admirar a cumplicidade de velhos amigos que Dona Arminda e eu
demonstrávamos.
Houve tempo para a
pequena senhora solitária – cuja filha vive em Teresópolis com a
família e o filho, no exterior - falar-me, ainda, da atividade como
voluntária que exerce há dez anos numa fundação para cuidar de
crianças com câncer. Contou como é bonto o trabalho de dar suporte
às crianças (e seus pais) que vem de longe e que não possuem
recursos para manter os gastos da doença e da distância; como é
tocante ajudar a dar dignidade a vidas mesmo que no breve período
que lhes resta; como que o primeiro contato de espanto com crianças
muitas vezes já mutiladas por consequências da doença se converte
imediatamente numa revalorização da vida nos seus aspectos mais
simples em vez de reclamar, reclamar e reclamar de coisas tão
pequenas quando se tem saúde.
Dona Arminda disse
que sua fundação precisa de voluntários homens. Ficou o convite,
entendi logo – por ser homem e por ser artista, o que estimula
muito engajamento de outras pessoas. Trocamos e-mails e telefones.
Mas pediu para que a procurasse antes do dia vinte de janeiro, pois
sua próxima viagem será nesta data, rumo ao Leste Europeu. As maçãs
enrugadas de seu rosto e seus lábios encheram-se de prazer ao falar
das cidades já visitadas: Paris, Moscou, Atenas... e agora Praga,
Viena, Budapeste...
Prometeu me enviar
um e-mail com detalhes sobre a fundação e pediu para que eu fosse
logo, "antes dela morrer". E eu disse "que é isso,
Arminda!", pois ela já me pedira para não chamá-la nem de
"dona" nem de "senhora". (Mas fiquei pensando, na
verdade até agora penso se não foi um sinal a condição que me
impôs: "antes de ela morrer...". Bom, ligarei ainda essa
semana, se minha memória não falhar). Para arrematar aquele
encontro com um tirada digna de um contista que calcula os passoa
rumo ao momento final surpreendente de uma narrativa, ela mandou:
- Você já voou de paraquédas?
- Ãhn?
- De paraquedas, eu disse?
Fiquei passado!
Disfarcei o quanto pude para a boca não cair.
- (Minha réplica foi o silêncio)
- Pois faça. É o melhor remédio para se perder o medo. No início dar uma coisa no estômago, mas depois, é uma beleza, uma liberdade indescritível! Faça isso!
Eu, jovem velho, com
tantos medos, e ela, idosa, tão disposta. E antes a própria chegou
a perguntar se eu conhecia a diferença entre velho e idoso. Você já
pode imaginar qual é. Idosa é a cronologia, irremediável; velha ou
jovem pode ser a alma – independente de idade. Sinto que ela
percebeu no seu íntimo que eu precisava ouvir tudo o que ela me
disse. Um anjo enviado por Deus, a Dona Arminda!
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Percebi que apesar
de toda aquela espera causada pela má adiministração corriqueira e
das autoridades de nosso país que não aplicam como devem o dinheiro
de nossos impostos, antes de embarcar naquele voo eu estava
irritadiço demais, cansado demais daquilo e de outras cositas
pelas quais não merecem que nos consumamos tanto, principalmente
quando só se tem vinte e poucos anos... Eu stava "velho" e
Dona Arminda me rejuvenesceu, me devolveu, na verdade, à idade
eterna dos que sonham.
Izak Dahora
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