domingo, 6 de março de 2011

"Black Swan" - o retrato contraditório e sublime em como o artista pode se autodestruir.


Sempre admirei os bailarinos. Talvez nenhum artista tenha em seu ofício relação tão próxima com a liberdade do corpo como eles. Seus saltos, elasticidade, disponibilidade no espaço/tempo são de uma poesia fascinante, comevente e até misteriosa. Como os acrobatas e os trapezistas, os bailarinos são provavelmente os únicos seres do palco de que tenho conhecimento capazes de provar da sensação de "voar" a partir de si mesmo, dos próprios movimentos, seres alados, quase como pássaros.

Porém mais do que isso, digo que eles sempre tiveram o meu respeito, pois tanta leveza guarda rigor  extremo e também desgaste inevitável. A rotina e a dieta de quem dança é de uma disciplina metódica, minimalista, podendo ser tão rígida quanto algo militar – e de tanto trabalho, de apacidade de concentração num esforço repetitivo, de tantas dores e calos o resultado a que se assiste normalmente é de simplicidade e delicadeza. O balé prova – inclusive aos atores, dos quais faço parte, que o trabalho do artista envolve o sonho mas que para ser realizado é muito mais físico do que o contrário. Reforça a crença de que não existe arte sem uma forma, sem um corpo, sem um tônus vivo e concreto que se apresente, pois é pela carne que se trocam e se transmitem todas as emoções e ideias. A dança faz-nos ter a dimensão da necessidade e da vitalidade material da nossa condição – contradizendo Platão. Como ator que sou digo que poucos são os atores que levam a profissão com a seriedade de treinamento e reciclagem como os bailarinos. Normalmente perdem-se no glamour atroz das capas de revista e exposição midiática da tv - que são veículos importantes mas não não Arte íntegra. Os atores (grande parte) ainda não treinam o seu instrumento. Por isso, o povo do balé exemplo - e eu tento me inspirar sempre neles.

Mas sobre este "Cisne Negro" a que se pode assistir nos cinemas e que merecidamente , na minha opinião, faturou o Oscar  nas categorias diretor (Darren Aronofski) e atriz (Natalie Portman), digo que saí do cinema sem fôlego, atônito, me sentindo "mal". 
Mas um mal que no fim faz bem, porque o mal do descentramento causado por uma grande obra de arte. Trabalho extremamente competente, impecável de Natalie Portman numa narrativa por vezes até perversa no sofrimento de Nina, a protagonista, além de surpreendente e que, para além de todo e qualquer adjetivo que se lance ao filme, se assume como linguagem cinematográfica, por excelência: nossos sentidos se confundem à mágica da dança e da música, ao rigor desmesurado de muitos dos que buscam irrefreavelmente a perfeição da grande arte e comprometem a própria vida, à tensão permanente e às neurores da bailarina. É uma experiência profunda, emocional e fisicamente, já que Aronofski lança o espectador na mente confusa da personagem e faz de cada surpresa ou descoberta da mesma um susto para quem assiste. De modo que tudo é sentido na pele através de jogos de câmera "dançantes" e inquietos, fotografia tão sombria e sinistra quanto a vida de Nina a partir do personagem Cisne Negro emsua vida e da música. 

Creio que vale dizer que para quem é artista a experiência de assistir a esse filme é  especialmnete catártica, pois, ao contrário do que muitos dizem a respeito de Cisne Negro, concordo não ser preciso dilacerar a própria vida  em nome de uma estética ou da glória mas penso que o que se assiste  neste longa é um  retrato possível do que o artista pode acabar passando. Afinal, o que artista quer é agradar, e nisso impõem-se sacrifícios e renúncias imensuráveis - por muitas vezes vende-se por quase nada chantageada pela mente de diretores excêntricos, "sanguessugas" e megalômanos. 
A criação mexe com o psiquismo do artista e este pode ver-se de repente totalmente perdido. Nosso ofício lida com aceitação e rejeição, e uma opinião pode levar-nos ao mais profundo desampraro. É preciso ter cuidados com o artista. A linha entre o "surto" e delírio criativo e a loucura é tênue, dessa área fronteiriça pode brotar grandes obras como também a inércia "vegetativa" de uma frustração particular. É a esta fragilidade que o artista estará sempre exposto.   

E o filme deixa pulsante também uma questão que me ocorreu ainda durante a sua exibição: não seria o universo das bailarinas tão ou mais cruel que o hoje tão criticado mundo das passarelas? Não que isso redima a cobrança sobrehumana feita sobre as top models, mas o agravo para o balé seria o fato de a dança e seu rigor existem há muito mais tempo, tornando neuróticas as mentes de muitas jovens em realidade de competitividade invejas mútuas e redes de intrigas pela insegurança fustigada pelo meio que quer intérpretes cada vez o que se quer: inclusive servir de objeto sexual a quem pode conceder oportunidades - no caso do filme o diretor da companhia.
 
No ano passado, nós, os apaixonados por arte e por cinema, fomos agraciados com O segredo dos seus olhos que descrevo como belíssimo. E agora Cisne Negro , permitindo-me ao simplismo das adjetivações considero sublime. A imagem crepuscular da bailarina falecendo na última cena - e que intuitivamente me remeteu num certo sentido à personagem Norma Demund, a atriz-diva decadente de Crepúsculo dos Deuses -é paradoxal: mostra a ascenção para a glória ao fim do movimento final de peça para pouco intérpretes no mesmo tempo em que é ocaso, uma vez que a personagem deixa claro que não há mais fôlego para a vida. É o salto do triunfo e a descida à morte. Ao mesmo tempo. Um movimento paradoxal que desafia a própria lógica.

Na contradição da solidão perigosa do artista é que vejo onde está o grande mérito de Cisne Negro. Nesse caos existencial da personagem e formal da estética fragmentada e trepidante   sua eloquência.







Izak Dahora

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