terça-feira, 22 de setembro de 2015

A 'obra de arte total' do carnaval: multiplicidade artística e hibridação nos desfiles contemporâneos das escolas de samba"

Há praticamente um ano defendia minha dissertação de mestrado, intitulada “A 'obra de arte total’ do carnaval: multiplicidade artística e hibridação nos desfiles contemporâneos das escolas de samba".
Quem acompanha, mesmo sem maior interesse, os desfiles em questão, percebe a grandiosidade e a abundância de elementos artísticos hoje envolvidos nessa manifestação que têm sido reconhecida contemporaneamente, por leigos e estudiosos, como espetáculo.
Música, artes plásticas, teatro, dança, vídeo, performance, arquitetura (da própria configuração espacial total do “sambódromo”) e toda sorte de formas possíveis - que vão das formas de artesanato da cultura popular e materiais plásticos (muitos destes reciclados), passando por intervenções circenses, até à pirotecnia de linguagens tecnológicas de última geração – são assimiladas pelas escolas de samba. E é exatamente isso que faz com que cada desfile possa ser abordado não só como apresentação de contornos artísticos e teatralizados, bem como uma “arte total”, cujo funcionamento cada vez mais esmerado e orgânico entre suas partes, chega mesmo a aludir proposições estéticas ambiciosas da história do espetáculo, como o Gesamtkunstwerk (“obra de arte total” ou “obra de arte comum”), desenvolvido pelo compositor e diretor alemão Richard Wagner, à busca de uma restauração do sentido totalizante da arte trágica dos gregos, para ele deturpado pelo individualismo moderno e materializado na forma da ópera.



A comissão de frente da Vila Isabel (2009) mostra a minúcia da composição
teatral empregada nos desfiles em representação da Commedia dell'arte.Toda a dilatação gestual
e expressiva denota o quanto a forma dos desfiles aproximam-se da noção estética da ópera,
grandiosa e excessiva por natureza.
Fonte da imagem: extra.globo.com

Minha dissertação (cuja pesquisa ainda se desdobra) foi, então, antes de tudo uma proposta: de abordar, sob inspiração do conceito wagneriano, cada um dos desfiles como “obra de arte total” atual, brasileira e nossa; com especificidades de uma ópera popular que se dá fora do tradicional edifício teatral, ou seja, na rua, sob as hostilidades das intempéries possíveis e, ao mesmo tempo, sob as generosidades do “céu aberto” (em suas vastas possibilidades de encenação, instigando de modo frequente a ocupação do próprio espaço aéreo).    
Um dos paraquedistas que abriram o desfile da Portela (2015), evidenciando como as escolas investem em aparatos de elevada tecnologia ou de alto investimento financeiro, preenchendo o espaço aéreo (dentro das imensas dimensões do "sambódromo", de elevadas arquibancadas); e criando imagens de impacto, em conformidade com os tempos atuais de "sociedade do espetáculo" e com as "necessidades" da transmissão televisiva.
Fonte da imagem: carnaval.uol.com.br
Os desfiles formam uma manifestação artística e cultural que se beneficia - a meu ver, de modo, substancial – de nosso espaço-tempo da miscigenação étnica e cultural brasileira, que possibilita o encontro de referências artísticas tão diversas: a ancestralidade rítmica/percussiva de matriz negra; a sofisticação harmônica (musical e estética, como um todo) da cultura operística europeia; o sentido sempre tênue (e ainda presente) entre expressão artística autônoma e ritual religioso, afirmado por nossas tradições  ameríndias, afro-brasileiras e católicas, expressas em cânticos, representações, cortejos e danças dramáticas.
Estruturas da forma dos desfiles      
1)Em linhas gerais, entendamos a forma da arte total dos desfiles das escolas de samba a partir de um elemento básico da cultura popular: a procissão. É ao longo do cortejo que a teatralidade desse carnaval estrutura-se; e nesse curso todo um sentido narrativo e dramático é desenvolvido, reservando os mais diferentes quesitos (em suas potencialidades expressivas) para cada etapa do desfile. A aparição do último carro alegórico carrega sempre a função de clímax dentro do curso narrativo a partir do enredo; ou o próprio casal de mestre-sala e porta-bandeira (quando vêm depois da comissão-de-frente ou depois, à frente da bateria) lida, via de regra, com o emocional do público, seja pela distinção da sua dança (clássica), seja por ostentarem o pavilhão, símbolo maior de pertencimento à agremiação.    
A visão aérea mostra o caráter processional dos desfiles (isto é, que se desenvolve em diferentes etapas em cortejo).
Através da imagem observamos a distribuição da "arte total" do carnaval das escolas de samba, um apanhado
de diferentes formas, cores, texturas, volumes e também sons.
Fonte da imagem:  www.archdaily.com.br

2)Cada desfile faz-se do somatório de alas, setores e alegorias. Ou seja, trata-se de uma organização cujo princípio é a montagem de elementos diversos. E este termo, “montagem”, não é ocasional. Remonta as vanguardas estéticas do começo do século XX, período em que os desfiles das escolas foram plasmados (anos 1920), através de movimento da elite intelectual (representada por setores como a academia e a imprensa) que entenderam ser necessária a produção de uma nova imagem da identidade nacional, alicerçada agora na ideia da miscigenação étnica e cultural.

A tela "Samba"(1925), do pintor Di Cavalcanti, exemplifica como o olhar da elite intelectual passou
a enxergar de forma positiva e a valorizar os aspectos das culturas popular e negra
como elementos formadores da identidade brasileira com o advento
da visão modernista.
Fonte da imagem: www.olimpiadadehistoria.com.br

Os desfiles, deste modo, mesmo quando ainda não eram investidos de intenso vigor plástico (por opção ideológica que enaltecia a simplicidade folclórica e uma ideia de “tradição”), já prenunciava um sentido modernista de obra ao justapor elementos artísticos díspares, de modo análogo aos princípios de criação das vanguardas estéticas europeias, como a colagem cubista que “montava” imagens a partir de materiais de naturezas distintas (como areia, jornal, tinta etc no mesmo quadro), constituindo-se como um verdadeiro mosaico.   
3)São tantos os elementos e materiais envolvidos em cada desfile que não raro observam-se em sua forma tensões e aparentes contradições. Uma delas é a existente entre o sentido narrativo desenvolvido a partir do enredo (que tende a estabelecer sentido(s) comum(ns) de leitura) e o caráter alegórico, também fortemente presente na forma dos desfiles, e que aponta em sentido contrário à causalidade narrativa, ao irromper em uma só alegoria intensa dinamização sensorial e semântica na sua constituição híbrida que traz elementos já portadores de histórias, naturezas, vibrações.    
4)Dada a quantidade gigantesca de profissionais envolvidos na elaboração de cada desfile, surge a necessidade afirmar o caráter coletivo de criação (ainda que sob uma condução geral do carnavalesco) através da problematização do sentido de autoria.
Arte do futuro
Através do Gesamtkunstwerk, Wagner anunciava a “obra de arte do futuro”, sua feição e seu comportamento. Segundo o compositor, o futuro necessário da arte seria o da cooperação entre as potencialidades das formas artísticas, no que chamou de "ciranda das artes irmãs". Dentro desta perspectiva, cada arte deveria abdicar de sua condição individualizada para a geração de uma expressão artística de força inesgotável e capaz de revolucionar o humano através da sensibilidade e da experiência coletiva. Podemos ver no contemporâneo, uma possível efetivação dos, pelo menos em parte, dos ideais wagnerianos, uma vem que as artes hoje reconhecem seus limites e experimentam interfaces, diálogos, interdependências. 
Fiz neste texto um apontamento geral de minha dissertação trazendo algumas das questões que movimentaram a pesquisa. Que este breve apanhado possa estimular a leitura da dissertação em si e o aprofundamento dessas e de outras questões relativas à abordagem dos desfiles como demonstrações de arte total. Segue o link, abaixo: 
http://www.bdtd.uerj.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=7319



As escolas de samba afirmam o seu "barroquismo" (qualidade semelhante a das origens da ópera no século XVI) através de suas estruturas alegóricas (que tendem à própria fragmentação do discurso) tamanho o detalhamento formal (de altos e baixos, dobras, reentrâncias etc).
Fonte da imagem: oglobo.globo.com



O uso intensivo de tecnologias de última geração confirmam a inserção dos desfiles nas formas e nos discursos da contemporaneidade. No abre-alas do Salgueiro (2011), vemos a imagem de parte
da plateia projetada em um telão de led, demonstrando uma busca de (re)inserção do público
em um cada vez mais fechado sistema de representação.
Fonte da imagem: veja.abril.com.br



3 comentários:

Marcela Gaio disse...

E eu tive a honra de estar presente nesse momento! Uma defesa linda e cheia de paixão!
Parabéns mais uma vez, amigo!
Bjs,
Marcela Gaio

Marcela Gaio disse...

E eu tive a honra de estar presente nesse momento! Uma defesa linda e cheia de paixão!
Parabéns mais uma vez, amigo!
Bjs,
Marcela Gaio

Unknown disse...

Foi uma defesa belíssima!
Parabéns.

Bjs,
Clara Nery