quinta-feira, 29 de outubro de 2015

100 anos de um artista genial!



Já escrevi por aqui que flerto de modo contumaz com o passado. Escrevi isso ao narrar minhas lembranças do Carlos Manga, que partiu recentemente, figura que, aliás, dirigiu grandes sucessos do meu homenageado deste texto, Grande Otelo.

Mas minha referência a Otelo como alguém do passado é tão-só porque ele, quando nasci, viveria apenas cinco anos mais. Apenas por isso. Passei toda minha infância ouvindo memórias de infância do meu pai (principalmente) e da minha mãe sobre suas atuações em shows e em programas de TV. No início da adolescência, contudo, e felizmente, eu mergulharia de vez na obra desse grande artista. E viva o Canal Brasil, que com seu acervo, deu-me a possibilidade de assistir a Otelo ao lado de Oscarito nas "chanchadas" da Atlântida e muitos filmes mais. Otelo trabalhou em outras daquelas produtoras da época, como a Herbert Richers, onde fez, dentre outros trabalhos, "Um candango na Belacap", que é um dos meus filmes prediletos com o ator, filme do querido Roberto Farias (por quem também fui dirigido, assim como por Manga. Que sorte eu tenho!). Neste filme do início da década de 1960 (fase derradeira das chanchadas) e que tem a construção de Brasília como pano de fundo, Otelo está impagável, maduro e pleno de seus recursos. Seu número com a uruguaia Marina Marcel sobre "preto com loira" é formidável! Uma eficiente e divertida parceria de Otelo com o  e acrobático Ankito. Otelo estrelou muitos filmes e efetivou nas telonas um esquematismo da comédia (no teatro e no próprio cinema): as duplas. Oscarito, Ankito e também  Ronald Golias foram seus parceiros, com destaque inigualável para o primeiro.  

Eu descobria Otelo e o queria ver mais e mais na tela do Canal Brasil como quem é fã e contemporâneo de um determinado artista. Por isso não faz mesmo sentido considerá-lo alguém do passado: a referência de Otelo me é fundamental, fui (e sou) nutrido por aquele artista múltiplo e de uma possibilidade  ímpar em cena: para além de cômico, foi um especial ator dramático, como em "Rio Zona Norte", de Nelson Pereira dos Santos, drama modelar de um sambista do morro, talentoso e pobre explorado pelo sistema; maleável e com a experiência do subestimado teatro de revista deslocava-se em cena com a agilidade de um dançarino (que era); cantava; compunha ("Vão acabar com a Praça Onze", parceria com Herivelto Martins); e em "Assalto ao trem pagador", outro filme do já mencionado Roberto Farias, um clássico do cinema brasileiro, atual até o presente 2015, e no qual há uma cena que me emociona toda vez a que assisto - quando o personagem de Otelo, um morador do morro, integrante da facção criminosa que rouba o trem pagador, fala sobre a miséria de quando se morre uma criança no morro. Aquilo é de chorar e sai da boca de um ator tragicômico interpretando um bêbado embriagado de lucidez e de olhos comovedoramente esbugalhados.


Ao longo da adoslescência fui caminhando no teatro e conhecendo a história do Otelo dos palcos, figura importante no teatro de revista e no entretenimento, no show-business; da Companhia Negra de Revistas do empreendedor Jardel Jércolis ao lendário cassino da Urca. Um artista múltiplo  (que cantava óperas, financiado pela tutora, na infância, e escrevia poemas) e que foi o primeiro negro de grande reconhecimento popular neste país.


Também havia o preconceito de cor que tanto sofreu nos vários lugares onde brilhou...Mas sobre isso não escreverei aqui. Nem de seus problemas pessoais. Quero brindar à vida e a presença de Otelo na história do teatro, da TV, do cinema e do meu imaginário.
Quero brindar a Otelo em "Macunaíma", que segundo uma sintética e sensível versão do próprio - um intelectual - e em entrevista não me lembro para quem,  representava uma espécie de elo entre a chanchada e o cinema novo, dois grandes momentos do cinema brasileiro - por motivos opostos, e que, por ideologia e certo preconceito, não poderiam aproximar-se um do outro, na visão de muitos, mas que Joaquim Pedro de Andrade soube combinar, vendo na obra de Mário de Andrade, prospectada no Brasil profundo, um material que revela nosso espírito e vadio irreverente de país tropical e nossas mazelas e incoerências de povo colonizado.
Quero brindar a Otelo respeitado por Orson Welles, que disse que nosso Great Otelo (seu nome foi criado por Jardel Jércolis) era o melhor ator do mundo.
Voltando mais no tempo, quero fazer uma libação a Otelo em "Matar ou correr", "Dupla do barulho", até o Seu Eustáquio da "Escolinha do Professor Raimundo", programa da minha infância, em que Otelo não tinha um papel da sua estatura artística, mas que, de forma nostálgica, era como homenagem ao seu talento e verve pueril com aquelas caretas de antigas peças e filmes "Aqui! Qüi queres?").


Apesar do Brasil ser um país não muito afeito à memória do seus grandes nomes, o nome desse artista resiste, como no texto deste fã que se tornou artista tendo-o como ícone. Resiste, apesar dos pesares, como o estado de precariedade do teatro que leva seu nome em Uberlândia (antiga Uberabinha), sua cidade natal.          
         
Otelo é referência Artista que reunia as grandes "escolas" na fomação de ser de palco no Brasil e em qualquer lugar: o circo, o teatro, o cinema. Um dos maiores artista brasileiros do século XX.
Falar de Otelo é falar sobre o meu presente porque é das referências permanentes. Quando eu fazia o meu Saci, lá no Sítio do Picapau Amarelo, pensava muito nele!
Neste mês de outubro, no dia 18 de outubro, Grande Otelo, se vivo estivesse, faria 100 anos. Mas, com todo o seu legado, quem disse que ele não está entre nós! 

sábado, 3 de outubro de 2015

Na turnê de "Contra o vento", uma experiência de Amizade com o público de BH

Como atores, somos canais de ideias, sensações, energias, emoções.
Afinamos nosso instrumento para chegar até as pessoas num jogo, o do teatro, que é concreto, físico, mas cujas consequências e ressonâncias são da ordem do intangível, do imensurável. Participamos de uma comunhão que se renova a cada dia/noite e, por mais que tenhamos a responsabilidade sobre uma partitura ou estrutura cênica (exaustivamente ensaiada) que devemos sempre introduzir, encaminhar e sustentar, precisamos do público para a sua efetiva realização e seu aprimoramento constante. Sem o retorno imediato do dele, não sabemos qual o exato alcance das propostas que idealizamos ou de que somos intérpretes.

Domingo, dia 27/9, tive a oportunidade de participar, junto do diretor (Felipe Vidal) e dos meus colegas atores do espetáculo "Contra o vento - um musicaos", de um bate-papo com estudantes de teatro do Colégio Pedro II, de Belo Horizonte. Fomos conhecer parte do público que nos assistiu na terceira temporada da peça, em cartaz em Minas Gerais durante o mês de setembro. E fomos surpreendidos, em um domingo à tarde, de imenso calor, por uma turma igualmente aquecida, generosa e interessada.
Os estudantes em questão integram o ''Palavra Viva'', grupo dedicado à prática do teatro e que interage com propostas locais de contrapartidas sociais e formação de novas plateias promovidas pelas produções teatrais. Neste caso, fomos apresentados ao "Palavra" pela produtora Maria Mourão, integrante e também atriz do coletivo belo-horizontino 4Los5, com quem trabalhamos durante a temporada mineira de "Contra o vento". 
O condutor e professor do grupo, que chama Róbson Vieira, uma figura doce e disciplinadora, é como que saído daquelas narrativas legítimas de um romance de formação: sujeito simples, de cabelos compridos amarrados, denunciando que por ali já esteve (e continua existindo) alguém movido por idealismos, ser portador de fala mansa e firme, e de um imenso respeito pelo próximo e pelo saber. Um educador e humanista. Um professor daqueles que influenciam nossas escolhas, marcando nossa juventude e de quem costumamos lembrar para toda vida. Antes de entrarmos em sala, pudemos perceber o seu pedido de silêncio e a exortação a que os alunos nos recebessem com palmas - efusivas, afetivas e hospitaleiras palmas.
Robson abriu aquele encontro apresentando para nós o conceito e o sentido do teatro para o grupo com duas palavras que muito me tocaram: a "amizade", norteadora do princípio ético de convivência por eles mantido em sua "travessia". Ouvi-lo falar me deixou fascinado, pois com aquelas duas palavras emoldurou, a meu ver, uma imagem ideal e possível do teatro: um lugar onde nos reunimos por afinidades (do grego philia), dando-nos um sentido de pertencimento no mundo capaz de nos manter na luta constante pelos nossos sonhos (que, ansiados coletivamente, tornam-se ainda mais poderosos e possíveis), e num entendimento da vida como um caminho, ou "Travessia", a ser percorrido - Róbson, como um bom mineiro, fez uso, coincidentemente ou não, de termo consagrado na literatura brasileira pelo mineiro de Cordisburgo Guimarães Rosa, no seu "Grande sertão: veredas".

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Um rápida digressão.
O sentido ético que nutre o "Palavra Viva" cristalizado na amizade, incitado por seu professor, fez-me lembrar de Giorgio Agambem, filósofo italiano que no livro "O que é o contemporâneo?" resgata o sentido de filosofia no tempo dos antigos. Explica ele que na Grécia pensamento e amizade eram valores estreitos, relação presumida. A própria filosofia, em sua etmologia, contém a amizade (filo=afinidade ou amizade + sofia=saber). Ou seja, a construção do conhecimento chamava a prática coletiva, amistosa, e vice-versa.
A este pensamento fui instado pelas palavras generosas do professor Robson. Que positividade para o mundo vermos estética e ética andando de mãos dadas! Todo o saber teórico e sensível do teatro fustigado pela amizade.
Aliás, que coincidência, tive na minha adolescência um professor Robson (Almeida) que todo dia batia na porta da sala de aula para dizer coisas como "Trate as pessoas como gostaria de ser tratado", dentre outras, chamando-nos sempre, a mim e meus colegas e amigos, para irmos além de usarmos o ambiente da escola como lugar de saber científico apenas. O lugar do saber precisava, na visão dele, ser um espaço de sensibilização do humano.

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Pudemos perceber, meus colegas de elenco e eu, durante a conversa, o casamento entre a força do nosso espetáculo (cujo tema é a Tropicália, sob a perspectiva do Solar da Fossa, reduto atrator de jovens de ideias e comportamento transformadores nos anos 1960) e o ímpeto juvenil daqueles estudantes. Afinal, os tempos transcorrem mas a juventude parece mesmo estar sempre mais próxima dos sonhos, das descobertas, das diferentes formas de expansão das consciências e das revoluções.
Suas perguntas ajudaram-nos a esclarecer questões do próprio espetáculo, revelaram a percepção aguda para detalhes da representação, como o apontamento da música, da nudez e da fragmentação como potências definidoras do espetáculo. Fomos lidos por eles, jovens espectadores atentos que já haviam debatido as questões da peça em sala de aula durante a semana. Vários deles assistiram à peça diversas vezes.
Como ator, professor e pesquisador, fui pensando, ao vê-los, na importância dos caminhos da arte-educação. Em outro encontro com o público de BH, um frei (!) de Betim, que nos assistiu (também mais de uma vez, disse-nos preferir estudar a filosofia e a teologia através da representação de peças a ter que acessá-las por meio da gravidade e do silêncio que a experiencia dos livros pode comportar - ainda mais dentro do ambiente de contrição de um monastério.
O teatro, com o sensualismo que lhe é defindor (meio da ação, da palavra, do som, do visual...), toma-nos de assalto a sensibilidade, colocando-nos num jogo de interatividade e reflexão (epidérmica, emocional e intelectual). Mas há que se estar disposto para jogá-lo, pois, como já dizia o diretor polonês Tadeusz Kantor, "é impossível passar impune pelo teatro". É preciso coração e mente abertos!
Ao fim do encontro, quando os estudantes demonstraram sua expressividade através de músicas de sua própria autoria, movimentos coreografados e interpretação de textos (que me pareceram poemas), ficaram claros os efeitos de um trabalho continuado de formação ética e estética por meio da arte e, especialmente, do teatro, esta arte socializante por natureza. Seus versos eram como palavras de ordem, incitando a coragem, a determinação e a ousadia nos quais transpareciam a paixão pela arte e pelo teatro.                                            
Fazer teatro, de fato, é uma construção coletiva, um exercício de escuta (não só pelos que frequentam a cena, mas no jogo firmado entre palco e plateia), que  exige treino e reflexão - inclusive pelo público. Por isso, vejo que a assiduidade, a seriedade e o prazer com que o pessoal do "Palavra Viva" encara o teatro deverá conduzi-lo a ser um grande público de teatro - como precisamos disso! -, formado por cidadãos conscientes, sensibilidades porosas e, por que não, futuros atores, produtores e diretores. Ficarei muito feliz em vê-los com seu grupo no futuro, confirmando o ofÍcio e uma vocação.

A apresentação apaixonada  e emocionante feita por eles para nós, ao fim do encontro reafirmaram que a palavra poética e a música são poderosas armas - ainda mais quando reunidas. E assim eles portavam seus violões, versos, sorrisos e brilhos nos olhos.
"Inconfidentes" nas emoções encarnadas e vivas em palavras - imagino que o espírito mineiro deve ter-se feito presente -, transbordaram encantamento, fazendo-nos ter mais motivação para o nosso trabalho. Suspeito até que eles nos tenham surpreendido mais do que nós a eles.

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Escrever sobre arte, juventude, amizade, viagem, travessia e mineiros só poderia me fazer desaguar no Clube da Esquina:

"Porque se chamava moço
Também se chamava estrada
Viagem de ventania
(...)

Porque se chamava homem
Também se chamavam sonhos
E sonhos não envelhecem
(...)"

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Crise!

Crise têm sido uma das palavras mais repetidas no noticiário (nacional e internacional) ultimamente. Seja na política, seja na economia, seja na ecologia ou no clima, há constatações de desequilíbrios, descasos, ilícitos e similares que vaticinam perspectivas pessimistas.
Contudo, creio que períodos de crise são sempre períodos e há neles sempre a possibilidade de grandes guinadas rumo ao seu contrário.
A arte, aliás, faz-se muito dos momentos de dificuldade. Nosso estado de atenção às coisas e nossa criatividade tornam-se mais simples e latentes. A estabilidade e o sossego não fazem, definitivamente, parte do artista, ser cuja sensibilidade treinada de modo intenso e exaustivo o leva, não raro, às "vanguardas" de seu tempo, seja este qual for. 
Lembro agora dos versos abaixo que escrevi em 2008, postado aqui mesmo em setembro daquele ano - exatos sete anos e cinco dias. Resolvi recompartilhá-los e, de alguma forma, revisitar o Izak que os escreveu.
Hoje vejo que a minha experiência de ator, nas salas de ensaio e de aula (ainda na graduação, naqueles anos, de inquietudes à busca da melhor expressão interior e corporal para cada personagem, incidiram bastante na motivação dessa escrita.




Me coloco permanente no lugar da crise
Porque só dela é que posso sair algo novo.
Por isso acho sempre que não acho
Para ver se me acho
Aonde saberei que não sabia.
Filosofia.
É me achando vazio que
intuitivamente, mais que em movimento, ajo
e já, tão logo, de repente,
me descubro de algo novo preenchido.


(Izak Dahora)

terça-feira, 22 de setembro de 2015

A 'obra de arte total' do carnaval: multiplicidade artística e hibridação nos desfiles contemporâneos das escolas de samba"

Há praticamente um ano defendia minha dissertação de mestrado, intitulada “A 'obra de arte total’ do carnaval: multiplicidade artística e hibridação nos desfiles contemporâneos das escolas de samba".
Quem acompanha, mesmo sem maior interesse, os desfiles em questão, percebe a grandiosidade e a abundância de elementos artísticos hoje envolvidos nessa manifestação que têm sido reconhecida contemporaneamente, por leigos e estudiosos, como espetáculo.
Música, artes plásticas, teatro, dança, vídeo, performance, arquitetura (da própria configuração espacial total do “sambódromo”) e toda sorte de formas possíveis - que vão das formas de artesanato da cultura popular e materiais plásticos (muitos destes reciclados), passando por intervenções circenses, até à pirotecnia de linguagens tecnológicas de última geração – são assimiladas pelas escolas de samba. E é exatamente isso que faz com que cada desfile possa ser abordado não só como apresentação de contornos artísticos e teatralizados, bem como uma “arte total”, cujo funcionamento cada vez mais esmerado e orgânico entre suas partes, chega mesmo a aludir proposições estéticas ambiciosas da história do espetáculo, como o Gesamtkunstwerk (“obra de arte total” ou “obra de arte comum”), desenvolvido pelo compositor e diretor alemão Richard Wagner, à busca de uma restauração do sentido totalizante da arte trágica dos gregos, para ele deturpado pelo individualismo moderno e materializado na forma da ópera.



A comissão de frente da Vila Isabel (2009) mostra a minúcia da composição
teatral empregada nos desfiles em representação da Commedia dell'arte.Toda a dilatação gestual
e expressiva denota o quanto a forma dos desfiles aproximam-se da noção estética da ópera,
grandiosa e excessiva por natureza.
Fonte da imagem: extra.globo.com

Minha dissertação (cuja pesquisa ainda se desdobra) foi, então, antes de tudo uma proposta: de abordar, sob inspiração do conceito wagneriano, cada um dos desfiles como “obra de arte total” atual, brasileira e nossa; com especificidades de uma ópera popular que se dá fora do tradicional edifício teatral, ou seja, na rua, sob as hostilidades das intempéries possíveis e, ao mesmo tempo, sob as generosidades do “céu aberto” (em suas vastas possibilidades de encenação, instigando de modo frequente a ocupação do próprio espaço aéreo).    
Um dos paraquedistas que abriram o desfile da Portela (2015), evidenciando como as escolas investem em aparatos de elevada tecnologia ou de alto investimento financeiro, preenchendo o espaço aéreo (dentro das imensas dimensões do "sambódromo", de elevadas arquibancadas); e criando imagens de impacto, em conformidade com os tempos atuais de "sociedade do espetáculo" e com as "necessidades" da transmissão televisiva.
Fonte da imagem: carnaval.uol.com.br
Os desfiles formam uma manifestação artística e cultural que se beneficia - a meu ver, de modo, substancial – de nosso espaço-tempo da miscigenação étnica e cultural brasileira, que possibilita o encontro de referências artísticas tão diversas: a ancestralidade rítmica/percussiva de matriz negra; a sofisticação harmônica (musical e estética, como um todo) da cultura operística europeia; o sentido sempre tênue (e ainda presente) entre expressão artística autônoma e ritual religioso, afirmado por nossas tradições  ameríndias, afro-brasileiras e católicas, expressas em cânticos, representações, cortejos e danças dramáticas.
Estruturas da forma dos desfiles      
1)Em linhas gerais, entendamos a forma da arte total dos desfiles das escolas de samba a partir de um elemento básico da cultura popular: a procissão. É ao longo do cortejo que a teatralidade desse carnaval estrutura-se; e nesse curso todo um sentido narrativo e dramático é desenvolvido, reservando os mais diferentes quesitos (em suas potencialidades expressivas) para cada etapa do desfile. A aparição do último carro alegórico carrega sempre a função de clímax dentro do curso narrativo a partir do enredo; ou o próprio casal de mestre-sala e porta-bandeira (quando vêm depois da comissão-de-frente ou depois, à frente da bateria) lida, via de regra, com o emocional do público, seja pela distinção da sua dança (clássica), seja por ostentarem o pavilhão, símbolo maior de pertencimento à agremiação.    
A visão aérea mostra o caráter processional dos desfiles (isto é, que se desenvolve em diferentes etapas em cortejo).
Através da imagem observamos a distribuição da "arte total" do carnaval das escolas de samba, um apanhado
de diferentes formas, cores, texturas, volumes e também sons.
Fonte da imagem:  www.archdaily.com.br

2)Cada desfile faz-se do somatório de alas, setores e alegorias. Ou seja, trata-se de uma organização cujo princípio é a montagem de elementos diversos. E este termo, “montagem”, não é ocasional. Remonta as vanguardas estéticas do começo do século XX, período em que os desfiles das escolas foram plasmados (anos 1920), através de movimento da elite intelectual (representada por setores como a academia e a imprensa) que entenderam ser necessária a produção de uma nova imagem da identidade nacional, alicerçada agora na ideia da miscigenação étnica e cultural.

A tela "Samba"(1925), do pintor Di Cavalcanti, exemplifica como o olhar da elite intelectual passou
a enxergar de forma positiva e a valorizar os aspectos das culturas popular e negra
como elementos formadores da identidade brasileira com o advento
da visão modernista.
Fonte da imagem: www.olimpiadadehistoria.com.br

Os desfiles, deste modo, mesmo quando ainda não eram investidos de intenso vigor plástico (por opção ideológica que enaltecia a simplicidade folclórica e uma ideia de “tradição”), já prenunciava um sentido modernista de obra ao justapor elementos artísticos díspares, de modo análogo aos princípios de criação das vanguardas estéticas europeias, como a colagem cubista que “montava” imagens a partir de materiais de naturezas distintas (como areia, jornal, tinta etc no mesmo quadro), constituindo-se como um verdadeiro mosaico.   
3)São tantos os elementos e materiais envolvidos em cada desfile que não raro observam-se em sua forma tensões e aparentes contradições. Uma delas é a existente entre o sentido narrativo desenvolvido a partir do enredo (que tende a estabelecer sentido(s) comum(ns) de leitura) e o caráter alegórico, também fortemente presente na forma dos desfiles, e que aponta em sentido contrário à causalidade narrativa, ao irromper em uma só alegoria intensa dinamização sensorial e semântica na sua constituição híbrida que traz elementos já portadores de histórias, naturezas, vibrações.    
4)Dada a quantidade gigantesca de profissionais envolvidos na elaboração de cada desfile, surge a necessidade afirmar o caráter coletivo de criação (ainda que sob uma condução geral do carnavalesco) através da problematização do sentido de autoria.
Arte do futuro
Através do Gesamtkunstwerk, Wagner anunciava a “obra de arte do futuro”, sua feição e seu comportamento. Segundo o compositor, o futuro necessário da arte seria o da cooperação entre as potencialidades das formas artísticas, no que chamou de "ciranda das artes irmãs". Dentro desta perspectiva, cada arte deveria abdicar de sua condição individualizada para a geração de uma expressão artística de força inesgotável e capaz de revolucionar o humano através da sensibilidade e da experiência coletiva. Podemos ver no contemporâneo, uma possível efetivação dos, pelo menos em parte, dos ideais wagnerianos, uma vem que as artes hoje reconhecem seus limites e experimentam interfaces, diálogos, interdependências. 
Fiz neste texto um apontamento geral de minha dissertação trazendo algumas das questões que movimentaram a pesquisa. Que este breve apanhado possa estimular a leitura da dissertação em si e o aprofundamento dessas e de outras questões relativas à abordagem dos desfiles como demonstrações de arte total. Segue o link, abaixo: 
http://www.bdtd.uerj.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=7319



As escolas de samba afirmam o seu "barroquismo" (qualidade semelhante a das origens da ópera no século XVI) através de suas estruturas alegóricas (que tendem à própria fragmentação do discurso) tamanho o detalhamento formal (de altos e baixos, dobras, reentrâncias etc).
Fonte da imagem: oglobo.globo.com



O uso intensivo de tecnologias de última geração confirmam a inserção dos desfiles nas formas e nos discursos da contemporaneidade. No abre-alas do Salgueiro (2011), vemos a imagem de parte
da plateia projetada em um telão de led, demonstrando uma busca de (re)inserção do público
em um cada vez mais fechado sistema de representação.
Fonte da imagem: veja.abril.com.br



"Que horas ela volta?"



Assisti a "Que horas ela volta?" Um filme que merece ser visto porque fala muito de nós como país, cuja sociedade altamente estratificada teve historicamente a rígida definição dos espaços de uma elite e de uma não elite (delegada à "inferioridade" do trabalho propriamente dito), num jogo em que cada classe deveria saber os limites do "seu lugar". "Que horas ela volta?", quase despretensiosamente, com o humor e os afetos que nos ligam ("cordialmente") nessa sociedade de herança escravocrata, divisões, classismos e preconceitos, mostra também um Brasil contemporâneo, crivado ainda por estruturas coloniais da "casa grande e da senzala", mas que se renova em um quadro social mais dinâmico, de novos personagens ativos e possibilidades. Um filme indispensável.

Minhas memórias do Manga


Eu estava ansioso no dia em que iria conhecer o Manga. Devia ter uns dezoito anos, era meu sexto e último ano de "Sítio" e eu sabia da sua grandeza. Afinal, assisti do final da infância à adolescencia praticamente todos as "chanchadas" da Atlântida, muitas das mais bem-sucedidas delas dirigidas por Manga e estreladas por Oscarito e Grande Otelo. Na verdade, "chanchada" era uma forma pejorativa encontrada pela critica para rotular filmes despretensiosos esteticamente, de humor ligeiro e popular, e que muitas vezes serviam mesmo de base para lançamentos de músicas que seriam sensação no periodo carnavalesco. Havia uma forte influência do teatro de revista (gênero teatral popular) de bastante apelo musical.
As chanchadas eram tudo isso e divertiam por serem exatamente isso: um bom pedaço do modo de ser brasileiro mais simples e irreverente. Como sempre fui um ser curioso e que, por isso, aprendi a flertar com o passado, desbravava com encanto, através do Canal Brasil, os filmes não só da Atlântida bem como da Cinédia, da Herbert Richers e tambem da Vera Cruz (a mais seria de todas do inicio do nosso cinema, de produções épicas emuladas por Hollywood. Manga viria justamente para modernizar a chanchada, levando maior rigor técnico (inspirado no cinema americano) às produções daquele cinema ligeiro e popular. "Matar ou correr" e "O homem do Sputnik" são dois grandes exemplos disso, indo da paródia ao cinema americano (com o primeiro) ao argumento mais politizado (com o segundo), sem perder o humor calcado no carisma de Oscarito. Ambos os filmes são dos meus preferidos de todas as "chanchadas", junto a "Os dois Ladroes" e "Nem Sansão nem Dalila".
Minhas memórias do Manga iniciam-se, portanto, antes mesmo de conhece-lo pessoalmente.
Pois muito bem, era chegado o dia de conhecer o "Manga", figura mítica do nosso cinema, as pernas estavam bambas, e eu queria que ele soubesse de todo esse meu fascinio por aquela epoca e pelos filmes que dirigiu.
Foi quando entrou na sala do Projac, acompanhado de Federico Bonani, querido diretor de sua equipe que o apresentou para mim. Meus olhos brilharam; falei logo que era fã dos seus filmes estrelados pelo Oscarito, sabia que o comediante era uma figura importante na trajetória dele. Manga, emotivo e de frases de efeito, como sempre foi, apertou minha mao e arrematou:
- Oscarito era um gênio. O maior ator do mundo! - fiquei radiante; concordo com ele!


Dali, o trabalho seguiu, com núcleo do Manga e direção geral de outro querido, Ulysses Cruz. O "Sítio" estava sendo reestruturado pela emissora. Eram já quatro anos no ar e o programa ganhava uma nova direção de peso para reavivá-lo. Tim Rescala assumia a direção musical e a figurinista Luciana Buarque relia as roupas dos personagens sob uma leitura mais rural, mais simples.
Lembro de receber um elogio do Manga ao meu Saci, acho que numa festa organizada pela produção: "O seu olhão está bom, hein! Continua, continua!"
O programa ainda ganharia prêmio e eu veria o Manga todo bem vestido, como sempre em ocasiões especiais, na Casa Julieta de Serpa, no Flamengo, orgulhoso da láurea à obra de Monterio Lobato.
Quando a temporada e aqueles seis anos de "Sítio" chegaram ao fim, a necessidade de seguir trabalhando e a incerteza quanto ao que viria profissionalmente, me fizeram criar coragem e chegar a Manga e Ulysses para dizer: "Soube que irão fazer uma novela. Me levem! Preciso trabalhar!" Eu estava chegando aos dezoito, dezenove anos, e naquela altura, depois de muitos anos empregado e com uma idade, em que a maioria das pessoas começam efetivamente a trabalhar, eu não queria nem podia ficar parado.

A produção seguinte do Manga era a novela era "Eterna Magia" (2007), primeira obra solo da Elizabeth Jhin, trabalho que enfrentou rejeição do público ao tema da cultura celta e das valentinas. Ulysses queria que eu fizesse um padre, que teria uma historia de preconceito racial, algo assim, mas não fiquei com o papel pois a equipe de direção me achou jovem demais para o papel. De fato, eu era. Lembro do Vavá Torres, caracterizador, pondo um cavanhaque postiço para eu fazer um teste. Nao deu. Mas Manga e Ulysses, esses dois diretores importantes na minha vida, decidiram que eu faria outro papel na novela! Que alegria! Eu precisava mesmo nao parar de trabalhar, comecei cedo, dependia daquilo existencial e materialmente. Decidiram que eu faria um papel, só nao sabiam qual nem quando entraria no ar, devido, principalmente, aos ajustes que a novela sofreu no ar.

Os meses se passaram, via meus amigos em cena - Lara Rodrigues, Isabelle Drummond também recem saídas do "Sítio" atuando -, as pessoas perguntando quando eu entraria em cena, e eu não sabia o que dizer. Estava deprimido, de verdade. Recebia, mas nao trabalhava. Até o dia, um domingo melancólico em fim de tarde, em que Ulysses enviava um email avisando que tinha chegado a hora. A novela estava quase acabando. Brinco dizendo que entrei aos quarenta do segundo tempo. Beth Jhin tinha escrito um papel reunindo várias caracteristicas minhas, o que, apesar do tempo que fiquei esperando, me deixou muito honrado - Beth, aliás, é uma pessoa muito afetuosa, generosa, espiritualizada. Meu personagem, Tadeu, tocava violino, como eu! Era irmão do padre que, inicialmente, eu faria, e surgia na trama fugido do seminrio Calaça, de Minas Gerais, porque queria ser artista, e não padre.

Fiquei um pouquinho mais de um mês no ar mas foi bom. Por alguns motivos: pelo carinho da escrita da Beth, que nem me conhecia pessoalmente mas me presenteou, estabelecendo um elo de trabalho a partir dali, que se estendeu para sua novela seguinte ("Escrito nas estrelas"); pela oportunidade de estar em um elenco de primeira grandeza, que reunia nomes como Irene Ravache, Cleyde Yáconis, Osmar Prado, Aracy Balabanian e Cássia Kiss. Tudo isso a despeito das dificuldades enfrentadas por aquela novela. Uma produção que foi brava, lutou e passou com dignidade. E foi bom, sobretudo, pelo carinho e, posso dizer, pela fidelidade de Manga e Ulysses.

Na ocasião da novela, antes dela estrear, liguei algumas vezes para a casa do Manga para falar sobre a oportunidade de estar na novela mesmo que com outro papel. As mãos e a voz tremiam com medo de incomodá-lo, afinal ele já era um senhor de oitenta anos! Mas ele me surpreendia, recebia o chamado da empregada, falava comigo e pedia para eu ficar tranquilo. Numa das vezes disse:
-Enquanto eu respirar, você pode ligar pra mim! - num modo bem Manga de ser e que muito me honra e emociona porque "Eterna magia" foi o meu primeiro contrato como adulto, com o qual pude mudar de casa para o Rio de Janeiro, o início de um novo ciclo na minha vida.
Quando entrei na novela, Manga me chamou em sua sala e disse:
-Não falei que você ia fazer a minha novela? Prometi e cumpri.
A personalidade de Manga era forte, daquelas de que era infinitamente melhor receber elogios, pois sua voz e seu rigor eram igualmente fortes, explosivos. Tive a felicidade de dois encontros profissionais com ele nos quais senti a grandeza de sua experiência e também de seu carinho e de sua generosidade comigo e com outros colegas.
Manga tinha um estilo próprio: magnético, elegante, apaixonado por Felini, uma personalidade sedutora.... Trazia o charme de uma escola de direção (dos anos 50, 60) que já não existe mais e de um modo particular, Manga era grande contador de histórias, um show-man! Uma enciclopédia e um ícone do cinema e da televisão brasileira.
Que honra eu tive de trabalhar com o Manga e participar de seus dois últimos trabalhos! Levarei esta lembrança para toda a vida.


"Manguianas":
- A "praia" do Manga era mesmo o cinema, sua paixão! Quando assumiu o "Sítio", lembro dele dizer que não gostava muito de teatro.  E falava abertamente, sem medo. Há tanta gente que não gosta de teatro e tem medo de dizer que não gosta. É um direito.
- Há um pensamento dele que nunca esqueci. Ele disse, certa vez: "O que o diretor não entende é que todo autor é um pouco diretor; e o que todo autor não entende é que todo diretor é também um pouco autor". Achei esse pensamento curiosíssimo, e logo o estendi, até hoje, à relação diretor-produtor e ator-diretor.








sábado, 5 de setembro de 2015

Artigo sobre obra de Antony Gormley

No final de 2013, tive a felicidade de ver publicado pela Revista Valise, do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), um artigo escrito por mim sobre a obra do escultor britânico Antony Gormley, que em 2012 teve mostra retrospectiva de seus trabalhos exposta no Centro Cultural Banco do Brasil (Rio e São Paulo).
No link abaixo, o artigo:
Na ocasião da mostra, fiquei impressionado com a capacidade da obra do escultor de mobilizar a cidade com suas esculturas. Isto porque muitas delas eram instaladas ao ar livre, em pontos urbanos de extrema circulação, buscando chamar o indivíduo à percepção de seu corpo (e anatomia) na interação do primeiro com o espaço, nas mais variadas posições e possibilidades. Buscando um diálogo entre o que chamei de "corpos-escultura" com o dramático (minha área mais imediata), fui instigado por matéria do jornalista Gilberto Scofield Jr. para o Jornal O Globo, e tracei uma relação entre um sentido possível de dramático nas obras do escultor britânico e o conceito "teatro pós-dramático" (proposto pelo teórico teatral alemão Hans-Thies Lehman). O trabalho foi também oportunidade para perceber interações históricas entre a escultura e poéticas do dramático, como o drama burguês (do século XVIII, período em que escultura e drama partilhavam a predominante visão ligada à então emergente classe burguesa da narrativa e de uma temporalidade linear e ascensional). 

A mostra foi, sem dúvida, uma das exposições mais marcantes a que já assisti, e a obra de Gormley passou a fazer parte das minhas principais referências de arte contemporânea.


sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Ao mestre mestre Rufino!

Faço aqui homenagem ao historiador e professor Joel Rufino dos Santos, que morreu hoje (4/9/15). Destaco de sua vasta obra, de mais de cinquenta livros publicados, "A história do negro no teatro brasileiro", obra que vem a ocupar lugar ainda tão carecente de pesquisa que é o olhar sobre a contribuição dos negros nas artes dramáticas brasileiras, com a constatação de que tanto sua invisibilidade quanto sua presença nos palcos ao longo do tempo refletem um país marcado por séculos de escravidão, atávico preconceito e a necessária criação de formas dramáticas populares e alternativas - como as óperas populares dos desfiles das escolas de samba, que este que vos escreve pesquisa. Tive, na noite de lançamento do livro, a oportunidade de conversar com o professor Joel sobre a presença atual do negro no teatro, no cinema e na televisão. Ele sinalizou um olhar positivo acerca das conquistas nesse tocante até aqui, mas sem apontar também a necessidade de mais avanços. Depois disso, mantivemos uma breve e estimulante troca de e-mails, nas quais ele foi sempre afetuoso. Gostaria de tê-lo como interlocutor ainda muitas vezes. Recebo com enorme tristeza a morte desse intelectual tão generoso.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

"Antologia do remorso"


“ANTOLOGIA DO REMORSO”: Em cartaz no Teatro Gonzaguinha, espetáculo marcado por simplicidade formal (centrando-se no jogo de um entrosado trio de atores), surge de coletânea de textos literários de forte inclinação (melo)dramática.

 

          Três cadeiras e três atores. É basicamente a partir desses seis elementos (apenas) que se constrói o espetáculo. Uma “Antologia” de cinco contos serve de base textual e a preservação do gênero literário dos mesmos é buscada pela encenação, que se utiliza de diversos expedientes para imprimir dinâmica dramática às narrativas.

          Antes de qualquer coisa, é preciso registrar que as cinco histórias possuem já considerável expressividade dramática, uma vez que suas situações e personagens são afeitas ao conflito e mesmo à desmesura, ao humor cáustico e ao patético encontráveis em muitos dos desejos e relações humanas. E nisso, vê-se inevitável aproximação de tal material “dramático” das histórias com o universo rodriguiano (em suas personagens, paixões e obsessões), que detalharemos mais adiante. Feita essa comparação que se demonstra movente na leitura do universo simbólico tratado pelo espetáculo, pode-se identificar, de modo mais preciso, a referência melodramática que o alicerça.

          O(s) texto(s) da autora Flávia Prosdocimi demonstra(m) buscar no recorrente uso do pretérito mais-que-perfeito (para falar de ação pretérita concluída antes de outra ação do passado ter se iniciado; ex.: contara, fizera etc) uma espécie de distanciamento imaginativo que reforce o caráter literário das suas histórias, o que em cena – de modo sagaz percebido pela direção – enfatiza o estabelecimento de um tempo relativamente anacrônico e por isso atraente (a sugerir os anos 1950, típico do universo de Nelson Rodrigues, junto à composição de um evocativo figurino burguês da mesma época). Porém, tal sensação de tempo pretérito das histórias desfaz-se e revela-se suficientemente atemporal devido ao repertório fundamental de acontecimentos abordados pelos contos que percorre as relações da “Comédia Humana” desde sempre: desejos, traições, vinganças, segredos, revelações... – alcançando e mantendo empatia com a plateia.

          Ainda sobre o texto, percebe-se nele eficiência enquanto conto e enquanto texto que serve à cena. Isto porque, respectivamente, os contos encenados estruturam-se de modo simples, com tramas concentradas e enxutas, curta duração e término que busca invariavelmente o surpreendente e o inusitado; e porque, no palco, tais contos, por conta de sua já mencionada verve apaixonada e de ações objetivas e claras, ganham interessante fluência no jogo cênico e na comunicação com o público. Note-se: um dos grandes “entraves” observados pela crítica na transposição do literário para o palco costuma ser justamente a carência do literário muitas das vezes (na verdade, a sua não obrigação) com a construção de um delineado fluxo de ação (que promova um arco de acontecimentos que se estenda de um estado inicial até uma transformação daquele), princípio básico de um entendimento mais convencional do dramático.      

 

Atuação e direção afinados em fazer do jogo dos atores o essencial

 

          No primeiro parágrafo foi citada a ocorrência de um conjunto de procedimentos operados pela encenação (de Daniel Belmonte) de modo a vestir dramaticamente os contos de Prosdocimi. Expedientes como a instauração de planos alto e baixo, e frente, médio e fundo para fins de geração de ação e movimentos; investimento dos estados de ânimo vividos pelos personagens à narração; exploração intensa dos diálogos (aspecto natural ao sentido convencional do gênero dramático); uso da técnica “coringa” (variação de atores no mesmo personagem), especialmente com mais liberdade a partir do segundo conto; construção de tipos desempenhados com vigor pelos atores. Tudo isso pode ser visto como demonstração de um dinamismo cênico imprimido ao material literário.

          Demonstra-se eficiente a solução do uso de cadeiras cujos assentos são, ao mesmo tempo, tampas que, quando abertas, revelam pequeno espaço guardador de objetos (como óculos, espanador e avental) a servirem como códigos definidores de novos personagens dentre os vários que aparecem nos contos.

          O trabalho gestual e de movimento corporal dos atores obedece um esgarçamento característico do exagero melodramático e é executado de modo reconhecível e equilibrado nas partituras dos três atores (Elisabeth Monteiro, Gustavo Barros e Tiago D’Ávila). A interpretação também dos personagens secundários, que abre de modo franco espaço para a composição de tipos, encontra no carisma da trinca, sem exceção, um dos pontos de maior sustentação e interação do espetáculo com o público. A vizinha maledicente, o filho afeminado, a empregada afetada ou o bêbado, dentre outros, conquistam a plateia com seus humores, dores e preconceitos – o riso do público garante que todos conhecemos essas personagens e suas histórias, pelo menos de modo parecido. E, mais uma vez, o universo de Nelson Rodrigues faz-se lembrar com “seus amores e seus pecados” burgueses e suburbanos – vide a fixação da mulher por um par de seios novos; a síndrome de marido traído acometida por um homem e a desconfiança sobre a mulher e os colegas de repartição; a mulher recatada que ao conhecer os prazeres do carnaval, abandona o parceiro fugindo com outro homem e quando volta encontra um marido resignado e submisso.    

          É com entrega, ritmo envolvente e despudor que o elenco, ponto central desse espetáculo, desenvolve seu trabalho. Destaque-se ainda a clareza entre os momentos de narração e os de falas/diálogo e ação, ou mesmo quando uma coisa contamina a outra com liberdades para a ocorrência de um “narrador intruso” (que se intromete na história) e é ironicamente chamado atenção pelos demais personagens/atores.

          Coube à direção, neste espetáculo de simplicidade de recursos e iniciativa de talentosos atores, favorecer o jogo dos intérpretes através de marcações ágeis e dinâmicas e conseguindo também driblar as modestas variações de luz com a presença viva do corpo dos atores e com alternâncias nas disposições das três cadeiras para o estabelecimento de diferentes ambientações. 

          É, desse modo, explorando a inteligência cênica dos atores, as possibilidades dramáticas dos textos e também o elemento musical (intrínseco à linguagem do melodrama) que o espetáculo tem no momento, na imagem e na execução de “O ébrio” (clássico de Vicente Celestino) por Gustavo Barros, um de seus pontos mais expressivos e interessantes. De modo curioso, neste momento, ante ao espetáculo de intesa presença verbal e sonora, têm-se uma espécie de cena muda com um esgarçamento da musculatura facial e gestual do ator, como que dublando a música em ária de ópera (destacado no proscênio) – o resultado impressiona, afeito que é aos arroubos interpretativos característicos do melodramático e que nos caminhos do mesmo a ópera cristalizou de maneira singular.

          A trilha musical, de fácil e imediata comunicação, pontua, via de regra, as transições de um conto para outro.

          “Antologia do remorso” é um espetáculo simples e feito com honestidade e talento, em que a simplicidade dos recursos não denota, em tempo algum, ausência de entendimento e cuidado; pelo contrário, é porta aberta para a criatividade de um elenco vigoroso e que escolhe, de maneira bastante adequada ao seu temperamento e virtudes cênicas, o melodrama.

          Um espetáculo que fala de questões espinhosas (a partir já do título de feições melodramáticas) sem a pretensão de ser denso ou sério. E por isso, diverte – o que a leveza da plateia confirma na saída do teatro.

 

domingo, 4 de janeiro de 2015

"Relatos Selvagens"




"Relatos selvagens" é um filme extraordinário!!! Trata da violência do ser humano em várias de suas formas através de seis histórias que causam um leque de sensações ao mesmo tempo, da repulsa ao riso mais desbragado. E faz rir porque expõe as violências possíveis do humano (supostamente racional, ético e moral ao absoluto) no ridículo ao qual é capaz de chegar, seja por paixão, frustração, corrupção, vingança, opressão do sistema... O filme reflete, critica e diverte. E faz algo que eu acho muito interessante: reinventa aquela velha têmpera latina (de intensidade, dor e sofrimento comuns nos melhores tangos), que a crítica do Cacá Diegues definiu muito bem ao chamar as histórias narradas no longa como "óperas trágicas cheias de humor", "neochanchada pós-moderna, culta e cruel". Palmas pro cinema argentino, mais uma vez!