Eu estava ansioso no dia em que iria conhecer o Manga. Devia ter uns dezoito anos, era meu sexto e último ano de "Sítio" e eu sabia da sua grandeza. Afinal, assisti do final da infância à adolescencia praticamente todos as "chanchadas" da Atlântida, muitas das mais bem-sucedidas delas dirigidas por Manga e estreladas por Oscarito e Grande Otelo. Na verdade, "chanchada" era uma forma pejorativa encontrada pela critica para rotular filmes despretensiosos esteticamente, de humor ligeiro e popular, e que muitas vezes serviam mesmo de base para lançamentos de músicas que seriam sensação no periodo carnavalesco. Havia uma forte influência do teatro de revista (gênero teatral popular) de bastante apelo musical.
As chanchadas eram tudo isso e divertiam por serem exatamente isso: um bom pedaço do modo de ser brasileiro mais simples e irreverente. Como sempre fui um ser curioso e que, por isso, aprendi a flertar com o passado, desbravava com encanto, através do Canal Brasil, os filmes não só da Atlântida bem como da Cinédia, da Herbert Richers e tambem da Vera Cruz (a mais seria de todas do inicio do nosso cinema, de produções épicas emuladas por Hollywood. Manga viria justamente para modernizar a chanchada, levando maior rigor técnico (inspirado no cinema americano) às produções daquele cinema ligeiro e popular. "Matar ou correr" e "O homem do Sputnik" são dois grandes exemplos disso, indo da paródia ao cinema americano (com o primeiro) ao argumento mais politizado (com o segundo), sem perder o humor calcado no carisma de Oscarito. Ambos os filmes são dos meus preferidos de todas as "chanchadas", junto a "Os dois Ladroes" e "Nem Sansão nem Dalila".
Minhas memórias do Manga iniciam-se, portanto, antes mesmo de conhece-lo pessoalmente.
Pois muito bem, era chegado o dia de conhecer o "Manga", figura mítica do nosso cinema, as pernas estavam bambas, e eu queria que ele soubesse de todo esse meu fascinio por aquela epoca e pelos filmes que dirigiu.
Foi quando entrou na sala do Projac, acompanhado de Federico Bonani, querido diretor de sua equipe que o apresentou para mim. Meus olhos brilharam; falei logo que era fã dos seus filmes estrelados pelo Oscarito, sabia que o comediante era uma figura importante na trajetória dele. Manga, emotivo e de frases de efeito, como sempre foi, apertou minha mao e arrematou:
- Oscarito era um gênio. O maior ator do mundo! - fiquei radiante; concordo com ele!
Dali, o trabalho seguiu, com núcleo do Manga e direção geral de outro querido, Ulysses Cruz. O "Sítio" estava sendo reestruturado pela emissora. Eram já quatro anos no ar e o programa ganhava uma nova direção de peso para reavivá-lo. Tim Rescala assumia a direção musical e a figurinista Luciana Buarque relia as roupas dos personagens sob uma leitura mais rural, mais simples.
Lembro de receber um elogio do Manga ao meu Saci, acho que numa festa organizada pela produção: "O seu olhão está bom, hein! Continua, continua!"
O programa ainda ganharia prêmio e eu veria o Manga todo bem vestido, como sempre em ocasiões especiais, na Casa Julieta de Serpa, no Flamengo, orgulhoso da láurea à obra de Monterio Lobato.
Quando a temporada e aqueles seis anos de "Sítio" chegaram ao fim, a necessidade de seguir trabalhando e a incerteza quanto ao que viria profissionalmente, me fizeram criar coragem e chegar a Manga e Ulysses para dizer: "Soube que irão fazer uma novela. Me levem! Preciso trabalhar!" Eu estava chegando aos dezoito, dezenove anos, e naquela altura, depois de muitos anos empregado e com uma idade, em que a maioria das pessoas começam efetivamente a trabalhar, eu não queria nem podia ficar parado.
A produção seguinte do Manga era a novela era "Eterna Magia" (2007), primeira obra solo da Elizabeth Jhin, trabalho que enfrentou rejeição do público ao tema da cultura celta e das valentinas. Ulysses queria que eu fizesse um padre, que teria uma historia de preconceito racial, algo assim, mas não fiquei com o papel pois a equipe de direção me achou jovem demais para o papel. De fato, eu era. Lembro do Vavá Torres, caracterizador, pondo um cavanhaque postiço para eu fazer um teste. Nao deu. Mas Manga e Ulysses, esses dois diretores importantes na minha vida, decidiram que eu faria outro papel na novela! Que alegria! Eu precisava mesmo nao parar de trabalhar, comecei cedo, dependia daquilo existencial e materialmente. Decidiram que eu faria um papel, só nao sabiam qual nem quando entraria no ar, devido, principalmente, aos ajustes que a novela sofreu no ar.
Os meses se passaram, via meus amigos em cena - Lara Rodrigues, Isabelle Drummond também recem saídas do "Sítio" atuando -, as pessoas perguntando quando eu entraria em cena, e eu não sabia o que dizer. Estava deprimido, de verdade. Recebia, mas nao trabalhava. Até o dia, um domingo melancólico em fim de tarde, em que Ulysses enviava um email avisando que tinha chegado a hora. A novela estava quase acabando. Brinco dizendo que entrei aos quarenta do segundo tempo. Beth Jhin tinha escrito um papel reunindo várias caracteristicas minhas, o que, apesar do tempo que fiquei esperando, me deixou muito honrado - Beth, aliás, é uma pessoa muito afetuosa, generosa, espiritualizada. Meu personagem, Tadeu, tocava violino, como eu! Era irmão do padre que, inicialmente, eu faria, e surgia na trama fugido do seminrio Calaça, de Minas Gerais, porque queria ser artista, e não padre.
Fiquei um pouquinho mais de um mês no ar mas foi bom. Por alguns motivos: pelo carinho da escrita da Beth, que nem me conhecia pessoalmente mas me presenteou, estabelecendo um elo de trabalho a partir dali, que se estendeu para sua novela seguinte ("Escrito nas estrelas"); pela oportunidade de estar em um elenco de primeira grandeza, que reunia nomes como Irene Ravache, Cleyde Yáconis, Osmar Prado, Aracy Balabanian e Cássia Kiss. Tudo isso a despeito das dificuldades enfrentadas por aquela novela. Uma produção que foi brava, lutou e passou com dignidade. E foi bom, sobretudo, pelo carinho e, posso dizer, pela fidelidade de Manga e Ulysses.
Na ocasião da novela, antes dela estrear, liguei algumas vezes para a casa do Manga para falar sobre a oportunidade de estar na novela mesmo que com outro papel. As mãos e a voz tremiam com medo de incomodá-lo, afinal ele já era um senhor de oitenta anos! Mas ele me surpreendia, recebia o chamado da empregada, falava comigo e pedia para eu ficar tranquilo. Numa das vezes disse:
-Enquanto eu respirar, você pode ligar pra mim! - num modo bem Manga de ser e que muito me honra e emociona porque "Eterna magia" foi o meu primeiro contrato como adulto, com o qual pude mudar de casa para o Rio de Janeiro, o início de um novo ciclo na minha vida.
Quando entrei na novela, Manga me chamou em sua sala e disse:
-Não falei que você ia fazer a minha novela? Prometi e cumpri.
A personalidade de Manga era forte, daquelas de que era infinitamente melhor receber elogios, pois sua voz e seu rigor eram igualmente fortes, explosivos. Tive a felicidade de dois encontros profissionais com ele nos quais senti a grandeza de sua experiência e também de seu carinho e de sua generosidade comigo e com outros colegas.
Manga tinha um estilo próprio: magnético, elegante, apaixonado por Felini, uma personalidade sedutora.
... Trazia o charme de uma escola de direção (dos anos 50, 60) que já não existe mais e de um modo particular, Manga era grande contador de histórias, um show-man! Uma enciclopédia e um ícone do cinema e da televisão brasileira.
Que honra eu tive de trabalhar com o Manga e participar de seus dois últimos trabalhos! Levarei esta lembrança para toda a vida.
"Manguianas":
- A "praia" do Manga era mesmo o cinema, sua paixão! Quando assumiu o "Sítio", lembro dele dizer que não gostava muito de teatro. E falava abertamente, sem medo. Há tanta gente que não gosta de teatro e tem medo de dizer que não gosta. É um direito.
- Há um pensamento dele que nunca esqueci. Ele disse, certa vez: "O que o diretor não entende é que todo autor é um pouco diretor; e o que todo autor não entende é que todo diretor é também um pouco autor". Achei esse pensamento curiosíssimo, e logo o estendi, até hoje, à relação diretor-produtor e ator-diretor.