Ainda não li Casa Grande e Senzala, livro fundamental na busca de uma compreensão mais próxima da formação da sociedade brasileira. Tenho verdadeiro fascínio pelo tema, mas, com todo respeito a Gilberto Freire, seu autor, seu marco sociológico terá de esperar mais um bocado pois que são muitos os títulos na fila. Já ando até me atrapalhando em ler mais de um livro ao mesmo tempo para conter a ansiedade!
Pois bem, a edição da Feira Literária Internacional de Paraty (FLIP) deste ano "homenageou" Freire e algo que causou bastante frisson e até certo desconforto foi o fato de a obra referência na dissecação histórica da sociedade brasileira ter sofrido críticas declaradas e contundentes.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, sociólogo como Gilberto Freire e autor do prefácio da última edição do livro marco, faz mais restrições que elogios à obra. Critica a ideia tão propagada pelo livro de democracia racial no país que, em sua visão, trata de maneira romanceada a escravidão e a discriminação no Brasil.
Não li o livro, mas digo que, neste aspecto geralmente sabido da obra, concordo.
Não sou próximo das convicçõe ideológicas de Fernando Henrique nem sou seu partidário – sempre estive longe disso -, mas acho saudável intelectualmente a revisão crítica da obra, aliás contrapartida teórica esta que surge de forma mais encorpada já nos anos 50/60, com inspiração marxista e destaque para Florestan Fernandes e os demais intelectuais da Usp, como o próprio Fernando Henrique.
Um título, como Casa Grande e Senzala, é passível de incongruêcias e equívocos como qualquer outro e a análise (e intervenção) periódica e fundamentada sobre o mesmo não o faz menor. Até porque, se somos uma sociedade, estamos em contínua dinâmica que nos permite mudar e, eventualmente, vermos melhor o que antepassados nossos não puderam ver.
Já o escritor e jornalista Luciano Trigo em seu blog Máquina de escrever, do G1, em texto do último dia 4, assimila as críticas de FH, mas procura evocar o lado positivo que há na obra de Freire, retirando-a de um certo radicalismo crítico do ex-presidente na FLIP.
É preciso mesmo ponderar com sensatez o contexto acadêmicamente incipiente (que o próprio FHC chama de ainda pouco objetivo cientificamente dos anos 30 do país no qual Freire esteve). E, ainda assim, o sociólogo pernambucano conseguiu realizar, palavras de Luciano, "uma interpretação pioneira, criativa", elucidativa de questões diversas do Brasil e do brasileiro resultantes dessa condição mestiça da nossa sociedade e que se torna expressão, código cultural singular nosso, apesar da discriminação e do preconceito históricamente conhecido.
Luciano também parece fazer justiça, na minha opinião, ao equilibrar a odiscussão só apimentada por FHC, percebendo Casa Grande e Senzala como mais ambiciosa e abrangente do que apenas o tópico da "democracia racial" que o autor pernambucano enaltece. Há no livro registro de costumes, culinária, comportamento etc que nos disseca. Porém, em mais outra dose de equilíbrio, Luciano afirma que é preciso estar atento à obra de Freire, que apresenta traços conservadores (como a já discorrida negação do racismo na construção social do Brasil), e o apoio do cidadão Freire ao regime militar instaurado em 1964 e a sua aproximação apoteótica com o salazarismo, correspondente ditatorial militar em Portugal, com direito a elogios e homenagens mútuas.
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Minha motivação para este texto surgiu a partir da crônica de Caetano Veloso que tratava exatamente de sua discordância de certas máximas que se tornam "verdadeiras". Como crer em democracia racial no Brasil e em democracia social plena nos EUA. Os americanos são mais avançados na dinâmica democrática, no meu entender, são capazes de eleger um Bush mas depois um Obama, sem problemas. Contudo, se um em cada cem jovens negros é preso, ao passo que a proporção para jovens brancos é de um em cada cem, isto sem adentrar na política tradicional aos imigrantes, de hostilidade, nem tudo são flores por lá.
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Percebo, cá, bem particularmente, sem querer fazer a cabeça de ninguém, que o brasileiro em geral ainda se projeta branco, rico e estrangeiro. Nosso Estado, entre outras medidas históricas, por exemplo, financiou a imigração (com isenções, moradia etc) ocultando sob tal atitude a inadmissão de ver o índio e o negro dentro de uma nova dinâmica social industrial de mobilidade e ascenção, já no século XIX. Investiu-se num "embranquecimento da raça", como dizia o Professor Darcy Ribeiro, e ambos (índio e negro) continuaram sendo vistos, em forma de ranço cultural, como subalternos (morais, intelectuais e religiosos, sem falar na divisão do trabalho e da geografia).
Contudo é importante dizer, antes que me venham tachar de xenófobo, que essa adição estrangeira, na minha opinião, nos caracteriza como civilização tropical mestiça, nosso dna sincero e rico, praticamente único no planeta, e a conquistar por essa mesma mescla posição política e cultural de destaque na geopolítica internacional como já ocorre – e como, antes, já profetizava o saudoso Professor Darcy.
O problema do Brasil é a não aceitação disso, dessa mistura, que é a não aceitação de nós mesmos. Até nas declarações para os sensos, eu percebia a dificuldade que muitos tinham em se auto-declararem de ascendência indígena ou afro. A quantidade de pardos nas pesquisas diante de tanta gente preta bonita nas artérias pulsantes desse país, como Avenida Rio Branco, Paulista etc, soava em mim como o grito de uma realidade que ainda precisamos superar com tempo, informação e amor próprio.
O resultado que vejo dessa trinca desejante (branco, rico, estrangeiro) é, inclusive, a corrupção. O brasileiro é trabalhador e solidário, criativo com, na maior parte das vezes, tão pouco, sem dúvida alguma, mas há um sentimento de jeitinho e impunidade que percorre nossas veias em todas as escalas, de cima para baixo. Aliás, em toda a América Latina. Parece que o brasileiro médio já constatou em que nível de baixaria nossa sociedade foi formada desde tempos cabralinos e então, fatigado de tanto escândalo de Brasília e arredores, dos "homens brancos e de colarinho a la europeia exploradora", acha que deve fazer o mesmo, em outras proporções, é claro. Haja país pra tanto jeitinho!
O resultado é ainda gente votando em determinado candidato em troca da dentuadura para a mãe ou interessado naquele "bendito" cargo de confiança na prefeitura ou no estado, dispensando o processo digno mas "chato" dos concursos. Aliás, quantos concursos fraudados nesse país! Agora tornou-se moda descobrí-los.
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Repito: ainda não li Casa Grande e Senzala. Vou ler. Pertenço a uma geração que convive num tempo de Brasil em que certas máximas (como a do mito da democracia racial contida na obra de Freire) vêm caindo por terra e a partir de críticas que se me apresentam com algum sentido. (A discriminação hoje é até bem mais da ordem da hipocrisia social, a meu ver).
Logo, dentro em pouco, pararei para apreciar mais pormenorizadamente a obra, apreciar seus méritos da observação de nós mesmos e seus possíveis equívocos.
Izak Dahora
3 comentários:
Izak , Amore, ouvindo
AL GREEN - PERFECT TO ME
http://www.youtube.com/watch?v=d66P8Lb75qQ
Veio a vontade de escrever...
Que sensação é Essa?
Estou sentindo falta de algo que
não sei ao certo explicar...
Então viajo na música que toca o
meu coração, e que me faz anestesiar
a mente,e aos poucos o sentimento aflora
em minha pele...
Sinto uma satisfação que mais uma vez não
tem explicação, e meus olhos brilham.
E continuo viajando na música que faz
bem pro corpo e pra Alma, como se fosse
fazer Amor com as notas musicais...
Dedico á você querido
Beijos nos seus pensamentos, nesse
momento, nesse exato momento
Beijos
Júh♥
Eu não li inteiro ...apenas o prefácio e 1/3 do livro...mas levando em conta que a casa é grande acho que vale...
a primeira parte ( que li)aborda que nenhum outro povo teria o gosto de "colonizar o Brasil"senão o português...e como os habitantes das senzalas inseriram seus costumes na construção da cultura Brasileira...Na verdade da parte que li Freire fala mais dos gostos dos portugueses pela cultura afro ameríndia que de qualquer outra coisa...Eu me surpreendi!!! esperava esta visão mais romanceada que o FHC antecipa no prefácio...Mas acabei mergulhando com gosto na leitura! mas meu olhar é parcial...mas vale! ou não!!!
Comecei a ler Casa Grande e Senzala, mas fui bruscamente interrompida por outras leituras obrigatórias aos universitários. Acabei ficando com o prefácio de FHC. Certamente não satisfaz. Deixando de lado o preconceito que tenho contra esse sociólogo que não é social, acabo tendo que concordar com ele na chamada inocência de Freire. Infelizmente,o Brasil está distante do ideal de democracia racial. E não sou daqueles que culpa os próprios negros por suas mazelas, mas devo dizer que a despeito do ideal tríade de como ser e viver que é plantado em nós, já adquirimos força suficiente pra nos declararmos mais. Pra fazer valer a nossa voz, nossos valores etc e tal. Falta mesmo é amor próprio e vontade de fazê-lo brotar.
Seu texto tá maravilhoso. A abordagem me fez lembrar o "Raízes do Brasil", do bom pai de Chico. Tudo isso misturado, como o caldeirão cultural que é nosso país, dá uma tese e tanto!
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