sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Europa de bicicleta.

Semana passada assisti no canal da tv a cabo TCM a Ladrões de Bicicleta, de Vittorio de Sica, filme de 1948. A programação desse canal, aliás, é saboroso cardápio para quem é aficcionado pelos clássicos do cinema. Lá assiste-se aos grandes musicais da Metro, westerns, policiais, dramas, comédias, atores emblemáticos ainda jovens ou que já se foram. Dia desses assisti ao violento e perturbador Taxi Driver, do sempre polêmico Scorsese e com Robert de Niro; noutro, o emblemático Nasce uma estrela, com a eterna ingenuidade, delicadeza e simpatia de Judy Garland.

                                                                         

Mas logo nas sequências iniciais de Ladrões de bicicleta pude constatar a verdadeira fixação que o cinema europeu, sobretudo a filmografia italiana, tem por bicicletas. E por crianças, já que uma coisa puxa a outra. A primeira imagem filmíca na minha mente a dialogar com o filme em questão nem foi tão remota. A vida é bela, com Roberto Benini. Mas logo vieram também Cinema Paradiso e, provavelmente, alguns outros (vários) de Felini que devem ter lá as suas bicicletas ou os seus triciclos em circos, sem falar nos outros muitos "filmes de bicicleta" que abundam nas películas do país cujo formato é uma bota.

Em comum nesses filmes? A ingenuidade, a esperança, a poesia e, por vezes, como em Ladri di biciclette a melancolia e a chaga social que sobe e desce as ruas de pedra da cidade de Roma, cenário clássico com sua arquitetura histórica e atraente (na sua monumentalidade e na sua ruína). No caso deste filme, mais de ruína (social) cuja imagem e cuja estética do neo-realismo italiano, inspirou o mundo cinéfilo da época (no Brasil "fazendo a cabeça" de gente como Glauber e Nelson Pereira), com a proposta de um cinema que abordasse tema e personagens possíveis do cotidiano, do povo, com suas histórias cruas, duras, captadas em cenas de grandes externas, planos gerais, câmera na mão, farta figuração, bem como é movimentada a nossa vida urbana e prosaica.
Nesse filme de De Sica as grandes tomadas características da estética neo-realista são, conforme o seu conceito já rapidamente descrito, equilibradas a uma lente que enquadra em relação com o espaço da cidade, o homem, seu traço de simplicidade e sua vida de gente possível, seu sofrimento.
Trata-se da história de um homem pobre, Ricci, (vivido por Lamberto Maggiorani), desempregado, chefe de família, com mulher e filho, que consegue trabalho como colador de cartaz. Para chegar ao local de serviço e se locomover nos seus afazeres utiliza a bicicleta que, com muito sacrifício, consegue comprar. Todavia, reforçando o dito popular de que "alegria de pobre dura pouco", Ricci, ainda logo no início do novo trabalho, tem sua biciclette roubada enquanto cola os cartazes. Daí, de uma perda aparentemente banal e até jocosa, inicia-se uma busca repleta de pequenas aventuras, equívocos e emoções, rumo àquilo que representa o instrumento do sustento do personaem principal e sua família.

Porém, detalhe: o filme acompanha a história de um homem mas se revela exemplar da história de um espectro bem maior de homens (operários), no seu desamparo pessoal e social, na sua desmoralização progressiva frente à inexistência de recursos e nem escolhas senão a revolta seguida da infração da lei - paroxismo esse da desigualdade social.

Essa história se repete até os dias atuais, está nas ruas para quem quiser ver. Outra curiosidade, pelo menos para mim, é o título do filme que tem o substantivo ladrão no plural (ladri) e reforça o caráter coletivo da dimensão social trágica que se repete na vida de muitos mlihares de homens – milhões, na verdade. Quantos trabalhadores já não se desesperaram a ponto de ceder à tentação de tirar o que é do outro para repor algo que lhe tiraram e o Estado, com seus organismos como a polícia, não se preocupou em resgatar? Isso sem falar em Estados (e o brasileiro é especialista ) que não proveem o cidadão de elementos básicos (educação, segurança, emprego...) cuja carência facilitam igualmente para o mundo do crime e dos "poderes paralelos".

Mas bicicletas por bicicletas, justiça seja feita, a diferença da de De Sica é que, no caso desse seu clássico, o veículo tem importância central. É o "objeto de desejo" dos personagens porque agente da sua sobrevivência.

Há que registrar também, no minha recepção de espectador, a presença do menino Enzo Staiola – esse é o nome do pequeno ator que nos comove com seus olhos grandes claros de criança e que, junto ao pai sentado nas calçadas, muito lembra o Garoto de Chaplin. O menino Enzo emociona como a criança que precocemente já sente a dureza do mundo. O ar de pobres vagabundos dos personagens, aliás, sugere uma singela e inequívoca homenagem do diretor ao grande gênio do cinema Chares Chaplin.

Talvez os filmes seguintes do movimento neorealista não façam da trilha sonora uso tão apelativo ao pólo emocional do espectador como em Ladrões... , mas é possível emocionar-se sinceramente, sem isso ser fruto de chantagismos do diretor. O filme também faz refletir.
Outro traço marcante do filme é o espaço entusiasticamente concedido pelos grandes cineatas italianos aos artistas simples, mambembes, da praça e da graça. O amigo a quem Ricci vai pedir ajuda para encontrar a bicicleta ainda no começo do filme faz parte de uma trupe que ensaia um  novo número. O ator que ensaia e é, ao que parece, dirigido por esse "amigo" é um verdadeiro gaiato entre duas simpáticas mulheres e que diz sempre a mesma palavra, em diferentes entonações mas com a mesma forma antinatural e galhofeira: Gente! , que em italiano quer dizer povo.

De Sica, Felini e outros seus conterrâneos renovaram a linguagem do cinema mas preservando certas tradições e um riquíssimo caldo de cultura produzido no seio italiano: a Commedia dell'arte com seus Arlechinos, Brighelas, Pulcinellas, seus cômicos eternos do cinema como Totó, enfim, muita coisa, muita gente.
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 Talvez essa presença e essa magia das bicicletas já seja uma consciência ecológica maior (pelo menos em relação a nós sul-americanos) por parte do Velho Mundo.
É realmente engraçado, aqui no Brasil não existe a cultura de trafegar de bicicleta. Todos querem automóveis! Andar de bicicleta: um hábito local (europeu), simples, charmoso, poético e saudável que se eterniza na tela do cinema.

 
Izak Dahora


Um comentário:

CECILIA RANGEL disse...

Ladrões de Bicicleta é uma obra-prima do cinema italiano, que na minha opinião é feito por alguns dos melhores cineastas de todos os tempos.
O cartaz de Cinema Paradiso fecha com chave de ouro esta postagem.
Beijos!!!!!!!!!!!!!!!