quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Um instrumento evoluído – desmistificando e desmitificando a mística e o mito.




Para a maior parte das pessoas sou ator e pronto. E, como se pode facilmente perceber aqui, cultivo imenso afeto pelas letras, fascínio pelo conhecimento e grande interesse em transformar o mais legível possível as experiências, as sensações, as ideias.

Contudo é do meu lado músico que venho agora falar. (Sim, sou também apaixonado pelo som, tenho necessidade dessa arte, mas intuo também que é o instinto de sobrevivência dos artistas - eternamente marginais do poder e da conservação-, que me impele a fazer tantas coisas. Afinal de contas, se o artista, para desfrutar de estabilidade, optar entregar-se aos caminhos mais curtos, confortáveis e rentáveis, ele deixará de ser artista ou de estar próximo disso, penso. Artista precisa de liberdade para contribuir com gesto crítico. Por isso, atrevidos, estimulamos tanto nossa sensibilidade e nossas supostas habilidades em instrumentos os mais variados. Enfim, fiz uma digressão um tanto quanto desnecessária.).

Indo ao que interessa, fui elogiado pela dona da escola de música onde (também) trabalho, que disse ser o meu instrumento de ofício (o violino) algo muito difícil e evoluído.
Concordei imediatamente quanto ao primeiro adjetivo. O violino exige verdadeiramente uma correção postural, uma concentração do ouvido, pois diferentemente de outros instrumentos de corda, não possui trastes que indiquem a posição exata de cada dedo, além de uma articulação independente para cada uma das mãos. Um exercício que demanda extrema paciência – admirável quando o violinista é ainda criança, e generosa por parte dos vizinhos do músico, pois até este até acertar a afinação pode ensandecer os ouvidos alheios e os seus próprios com aquela estridente fricção do arco nas cordas.

Porém quanto ao segundo adjetivo, de que a arte do violino trata-se de uma expressão molto evoluída, fiquei um pouco reticente. Sua sonoridade, para mim no telúrico dos graves e no brilho etéreo e escarlate dos agudos é realmente poderosa, chegando a inebriar de paixão e languidez qualquer ouvinte, principalmente se interpretado por um exímio virtuose. (Brecht, dramaturgo alemão do século passado, autor de forte ideologismo marxista que inspirava suas peças de uma densa dialética, buscava a reflexão do espectador, para isso tratou-se logo de "execrecrar" o emocionalismo tenso do instrumento de Stradivarius de suas trilhas musicais antológicas criadas por Kurt Weill, tamanho era o poder dos violinos).
Mas – e creio que não por modéstia – penso que todo instrumento fala íntimo se se é posta alma no seu corpo e se o o seu corpo é prolongamento do corpo de quem o toca. Por isso sigo hesitando em concordar com a patroa da escola.
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É que o violino conquistou posição de destaque dentro da tão suntuosa orquestra – devido aos seus próprios méritos sonoros de expressividade e eloquência de uma dicção que se estica da semelhança com a voz humana até às raias do lúdico - que tornou-seuma espécie de figura intocável, endeusada, com reputação e mesmo veleidade de grande estrela. Minha mãe sempre me conta de uma propaganda de sua época de garota em que os instrumentos da orquestra, ganhavam vida e discutiam. O violino era o mais empertigado, metido mesmo. Uma imagem que se tornou estereótipo dos violinos e dos próprios violinistas. Da imagem calada e concentrada, típica de músico de qualquer naipe, parece que ser violino/violinista é sinônimo primeiro de alguém kafkianamente lúgubre, triste, e quando mais, sistematicamente austera e pomposa. Tudo bem, minha primeira professora, Noemi, mantinha um tanto de todas essas qualidades, apesar de permancer doce generala na minha memória.

E pareceu também, ao longo da História, que a música dita erudita – e que creio que é erudita, sim, não contra ninguém, mas a favor de sua própria densidade e complexidade técnica – não poderia se imiscuir a outros elementos criadores de som. O que acho uma bobagem sem tamanho, preconceito tacanho. Experiências do "clássico" com o "pop" e o "rock" e o "funk", por exemplo, já foram mais que refeitas e o resultado foi... lindo. Lembro agora de um clip do Marcelo D2 que vi de relance uma vez na MTV e era interessantíssimo: uma "batida perfeita"!

O preconceito ainda existe como ranço na "comunidade erudita" mas também nas demais "tribos", é preciso dizer. E semi-parafraseando Villa-Lobos e Tom Jobim, meus gurus, no fundo mesmo não existe fronteira entre erudito e popular, existe música. Ou músicas, em que algumas composições correspondem a tendências mercadológicas de momento e outras ficam, podendo ser de Cartola ou de Paganini.

Mas, voltando à minha patroa lá da escola de música, saí mesmo pelo humor quanto ao elogioso "evoluído" com que ela classificou e qualificou violinos e violinistas. Pontifiquei na irreverência quando chamou ambos de elite – aí então que gozei mesmo:

-Ah, somos, então, como que uma seita, permitida somente aos iniciados no topo das pirâmides? - devolvi e aceitei o elogio fazendo pilhéria.


E talvez sejamos mesmo, pois não somos muitos. Ao contrário, somos poucos e trancadinhos nos quartos, tentando ajustar aquele dedo da mão esquerda sobre o "espelho" do violino, que, relapso, foge à marca da afinação, com uma paciência e uma dedicação quase monástica, sacerdotal.

Refuto o ar de estrelismo de qualquer coisa que faça, pois tenho a convicção de que em arte só nos aproximamos do âmago pela via da simplicidade, mas, técnica e apaixonadamente, reconheço , em satisfação incontida, que a partitura clássica na figura imediata do violino é, para mim, como texto de Shakespeare, outra paixão artística minha: por vezes com aparência de um rigor ultrapassado e excessivo mas que proporciona com propriedade - e singularidade - uma vivência humana e uma elasticidade técnica fantástica digna de qualquer experiência estética seguinte.

Obs.: Essa da imagem acima que precede a crônica, é Hilary Hanh, exímia violinista que esteve no Brasil no ano passado, uma das melhores da atualidade, a quem assisti em concerto na Sala Cecília Meireles, no Rio.


Izak Dahora

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