domingo, 8 de agosto de 2010

Meu pai e os livros.




De repente chegava à casa, cruzava a sala, abria a porta do meu quarto e me lançava uma pilha de títulos, com aquele ar docemente superior dos homens maduros e sábios. Podia trazer sob os braços um Aristóteles, um Nietzsche, um Marx ou mesmo a Bíblia, não importava a diversidade espantosa de estilos e crenças naquelas contidas, queria era que seu filho, eu, tivésse acesso irrestrito e contínuo ao vasto mar do conhecimento.
Ao me presentear, trazia também junto a si, no semblante, a satisfação dos que garimpam com prazer nos sebos da cidade títulos tão preciosos. Fez seu papel de entusiasmado e me tornei outro grande ardoroso das letras, modéstia à parte. Tanto, que prefiro sempre dar de lembrança aos amigos, quando das ocasiões de festa, livros. E fico especialmente feliz, confesso, se também os recebo.
Meu pai nunca foi o que se pudésse classificar como intelectual ou grande teórico., mas gostava de divagar e fazer pontes reflexivas com grandes pensadores, adorava o mito da caverna, de Platão.

Discordei muito de várias das suas visões e posições, a mim muitas vezes confusas (a fúria iconoclasta da adolescência me fez vê-lo mais humano e menos idealizado).Mas meu pai , que sempre foi de uma generosidade rara, certas vezes adequava a sua opinião para agradar a quem gostava – e sempre foi mais amigo dos amigos do que seus próprios amigos. Acho que um de seus grandes méritos como pai foi permitir que eu divergisse dele. Quando a maioria dos pais exige que seus filhos torçam para o mesmo time de futebol, papai, tricolor, deixou-me ser Flamengo – e juntos, torcemos muito pelo rubro-negro! Futebol sempre foi um tema gostoso lá em casa...Até os doze anos fui pagão porque assim que nasci, ele achou que eu deveria crescer e decidir quanto a minha crença religiosa. Jamais esboçou qualquer tipo de obstáculo ao meu interesse precoce por ser artista.
Hoje penso que as inúmeras oportunidades que me deu de ser livre só me aproximaram dele – apesar da distância física, toda a Baía de Guanabara, nos últimos anos.

Aproveito a ocasião para uma pequena menção ao meu avô, Manoel, pai de meu pai, e aos meus tios. Meu vô cultivou durante décadas aquelas antigas enciclopédias da Barsa, vermelhas, de capa dura, grandes... No princípio aquelas coleções que recheavam as estantes despertavam-me tanto fascínio na grandeza das páginas e nas miudezas das letras que tinha de lê-las só em momentos de total silêncio, para poderem ser bem assimiladas – acreditava na solenidade e criava todo um ritual para ler. Por isso também, é que passei, de início, tanto tempo contemplando as figuras, de tanto que respeitava aquela fartura de letras e de saber, semi-intocáveis que, logo, passei a saborear como doce nas mãos de criança.
Mas na casa desse meu mesmo avô, havia e há também ainda, a razoável biblioteca da minha tia Ivonete (ostentando quase tudo de Machado, Jorge Amado e outros), uma mulher muito politizada, como os demais tios, e a mais literária de uma casa de uma forte cultura do jornal impresso. Minha paixão pela esquerda, que nem sei se existe hoje mais, foi fustigada e se criou lá, naquele caldo cultural, em meio a muitos jornais, que, por pena da tia, não eram jogados fora.

Por pouco deixo de lembrar dos fins de tarde nos quais meu avô, protestante típico, homem reto e diligente nos afazeres profissionais de veterinário e da religião - que numa época de fortes preconceitos, alfabetizou-se aos dezoito anos e foi protagonista da sua história - me convidava para ler em voz alta trechos da bíblia. Já tentava o velho fazer a minha cabeça, ou melhor, mais do que isso, creio, buscava transmitir-me valores como honestidade, cárater, honra e determinação, importantes em qualquer fomação, independentemente de orientação religiosa ou ceticismo. Porém, não segui no protestantismo.
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Minha relação com a leitura e com o conhecimento foi tão mediada pelo meu pai (e sua família) que, não sei por que, muitas das vezes que adquiri livros, já com o dinheirinho do meu trabalho de ator-mirim, pedi para que ele, meu pai, autografásse e fizésse dedicatória. Meu pai foi meu grande ídolo da infância. Hoje sei que se trata de um ser humano como qualquer outro, tão passível de acertos e falhas como eu ou qualquer pessoa. Mas seu lugar no meu coração será sempre de amor e extrema gratidão, sobretudo pelos valores que me transmitiu – muitos deles através de calhamaços. Através destes, meu pai, sujeito um tanto sisudo  de criação, manifestou diversas provas de afeto e carinho por mim.
Hoje, por força das circunstâncias - quem sai da terra natal para conquistar a vida, entende o que digo - andamos distantes, aliás bem mais do que deveríamos! Mas as lembranças reaquecem nossos elos, que são para a vida toda.


Izak Dahora

Um comentário:

anita disse...

que texto bom de se ler, que história linda, a sua!