sábado, 5 de fevereiro de 2011

Do que tenho lido: Nietzsche e a tragédia grega.

"(...) Para servir-nos da terminologia de Platão, poderíamos dizer, das figuras trágicas do palco helênico, mais ou menos isto: o único Dionísio verdadeiramente real aparece em uma pluralidade de figuras, sob a máscara de um herói combatente e como que emaranhado na rede da vontade individual. E assim que o deus ao aparecer, fala e age, ele se assemelha a um indivíduo que erra, se esforça e sofre: esse, em geral, aparece com essa precisão e nitidez épicas, isso é o efeito de Apolo, esse decifrador de sonhos, que evidencia ao coro seu estado dionisíaco por meio dessa aparição alegórica. Em verdade, porém, esse herói é o Dionísio sofredor dos Mistérios, aquele deus que experimenta em si o sofrimento da individuação, do qual mitos maravilhosos contam que, quando rapaz, foi despedaçado pelos Titãs e nesse estado é venerado como Zagreu: o que sugere que esse despedaçamento, em que consiste propriamente a paixão dionisíaca, equivale a uma transformação emar, água, terra e fogo, e que portanto temos de considerar o estado da individuação como a fonte e o primeiro fundamento de todo sofrimento, como algo repudiável em si mesmo. Do sorriso desse Dionísio nasceram os deuses olímpicos, de suas lágrimas os homens. Nessa existência como deus despedaçado, Dionísio tem a dupla natureza de um demônio horripilante e selvagem e de um soberano brando e benevolente. Mas a esperança dos epoptes era um renascimento de Dionísio, que agora pressentimos como o fim da individuação: era para esse terceiro Dionísio vindouro que soava o fervoroso canto de júbilo dos epoptes. E somente nessa esperança há um clarão de alegriano semblante do mundo dilacerado, destroçado em indivíduos: assim como o mito o mostra na imagem de Deméter mergulhada em eterno luto, que pela primeira vez se alegra ao lhe dizerem que pode dar à luz Dionísio mais uma vez. Nas intuições mencionadas temos já todos os componentes de uma visão do mundo profunda e pessimista e com eles, ao mesmo tempo, a doutrina da tragédia que está nos Mistérios: o conhecimento fundamental da unidade de tudo que existe, a consideração da individuação como o primeiro fundamento do mal, a arte como a alegre esperança de que o exílio da individuação pode ser rompido, como o pressentimento de uma unidade restaurada. (...)"

                                        Friedrich Nietzsche - "O Nascimento da tragédia no espírito da música".

2 comentários:

CECILIA RANGEL disse...

Você anda lendo algumas de minhas grandes paixões: Nietzsche e Barthes.

Anônimo disse...

queria conseguir entender o que são esses Mistérios... leio, leio, leio, pesquiso e nada faz sentido.