segunda-feira, 15 de março de 2010

A fingida dor da atriz


A Revista O Globo, suplemento do jornal homônimo, publicou no último dia sete deste mês uma entrevista que muito me instigou (e continua instigando). Nem preciso dizer que o foi em função de tocar com agudeza e profundidade o trabalho do ator e a construção narrativa – questões que me muito me suscitam interesse e prazer (pessoal, intelectual e profissional).

O entrevistado era Eduardo Coutinho, diretor de Cabra marcado para morrer, Edifício Master e Santo Forte, dentre muitas outras contribuições fílmicas importantes e decisivas no aperfeiçoamento da linguagem do documentário no Brasil. Seu trabalho, junto ao de sua equipe, é respeitado, premiado e dispensa comentários adicionais.

Pois bem, a repórter Luciana Pessanha concentrou suas perguntas nos dois últimos documentários de Coutinho e este foi o eixo da sua entrevista. O entrevistado proporcionou o que considero uma preciosa luz no pensamento da construção cênica. Ele, que, apesar de já ter incurscionado no início da carreira pela ficção, até por estar hoje em dia, digamos, "do lado de lá" da elaboração e da reflexão ficcional, revelou nuances que, por vezes, "nós" que "estamos do lado de dentro", custamos a perceber ou, simplesmente, não percebemos. Mas é evidente que um documentarista – o qual lida constantemente com histórias, fatos e versões – domina em seu vocabuário e em sua gramática noções e termos que fazem também o dia a dia dos atores, diretores de teatro, dramaturgos, roteiristas e cineastas. Que dirá um documentarista do calibre de Coutinho.

O primeiro ponto da entrevista que me provocou, no melhor dos sentidos, foi logo na terceira resposta, depois de o diretor ser questionado sobre o que investigava em termos de linguagem ao escolher a participação de atrizes para encenarem depoimentos reais. Daí, ele afirmou a convicção (gerada a partir da longa experiência com o público) de que, no ato de narrar histórias, a forma como se conta sobrepõem-se ao que é contado, instaurando toda uma sintaxe, um vocabulário e uma expressividade particulares de quem narra. E independente de o conteúdo ser "verdadeiro" ou "falso", dada também a complexidade de se aferir o que é verdade e o que é mentira – e por parte do próprio narrador, ele indica -, pois tudo o que se conta e se transmite tem a ver – além da consciência e do interesse particular de cada um -, com a instância da memória, seu inverso natural que é o esquecimento, e o inato poder de invenção (advindo da imaginação humana). Ou seja, narrar é todo um processo demasiado amplo e sensível e, que conta, inevitavelmente, com a representação.

E isto pode ser assustador, porém absolutamente aceitável quando pensamos que até para convencer um amigo, quanto a qualquer narrativa que seja, numa conversa banal de botequim, a gente prescisa recorrer a técnicas da interpretação, da representação, para que sejamos "compreendidos" – ou para que , no mínimo, achemos que nos fizemos entender.

Uma de suas muitíssimas entrevistadas ao longo do tempo, uma garota de programa, ofereceu o que o próprio Coutinho considerou a própria definição de documentário: que seria em outras palavras, uma mentira dita com o peso de uma verdade. "(...) Disse que inventou uma avó, mas tinha que contar muito bem a história, até que passou a acreditar que tinha avó (...)".

São muitos os psiquismos da nossa mente humana!

Segue Coutinho:

"Por que então não ter atrizes, se as histórias são tão produto do imaginário? Ninguém é dono da sua história (frase que serviu de título à matéria). A dor da atriz é fingida, e é melhor do que a sua. Isso socializa a fala, que é de todo mundo e de ninguém".

Por isso a gente se arvora na arte de contar histórias, por isso a gente interpreta e é ator, por exemplo. Porque isso nos preenche um vazio que é da condição de humano.

Parafraseando o título de uma peça, e agora filme, ambos com direção de Cristiane Jathahy, trata-se uma "falta que nos move" (o subtítulo do filme é "Ou todas as histórias são ficção"). Precisamos de histórias (além de outras coisas, claro) e "pedimos" para sermos reabastecidos, simultaneamente ao movimento de também reabastecermos os outros de narrativas.
Por isso leio avidamente a Odisséia, de Homero, e em meio a sucessões de trechos absolutamente "fantásticos" (aos olhos real) persisto interessadíssimo na leitura, porque há alguma coisa naqueles mitos (na verdade muitas) que encerram humanidade. Eis aquele velho processo da identificação. Aquelas cenas que já foram contadas e recontadas por muitos ao longo dos séculos - distorcidas, aumentadas etc - investem-se de exemplaridade por conta dessa capacidade de aglutinação, dessa pluralidade humana, dessa aproximação com o outro e são, por isso,"melhores" que, de repente, uma versão pretensamente objetiva e ultra-individual acerca de um fato. Uma versão imaginada, ficcionalizada, que é mais verdadeira que a própria verdade. Os poetas, doces marginais, estão por aí desde sempre recontando a "História".

"A dor da atriz é fingida, e é melhor do que a sua". Carrego obssessivamente esta frase comigo e, desde a primeira leitura que fiz - em que normalmente não se pode ainda aprofundar as questões, ela me inquieta. Tanto que algo fez com que eu imediatamente a ligasse no meu cérebro ao poema Autopsicografia de Fernando Pessoa:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
(...)

Detalhe: psicografia, que, segundo o verbete de Aurélio Buarque de Holanda, quer dizer, numa das definições possíveis, "descrição dos fatos da mente".

O outro ponto que me causou aquela coceirinha na inteligência e me fez ler e reler por diversas vezes a mesma resposta foi no trecho em que Coutinho relembra o documentário Jogo de Cena na atuação de Fernanda Torres – excelente atriz! - e fala de um momento de impasse da intérprete durante o processo. Impasse que teria sido causado pela busca da intérprete em falar de maneira igual à uma das pessoas que tivera seu depoimento colhido pela equipe do documentário e que lhe servia de texto. Coutinho pediu, então, para ela não buscar esse mimetismo e, com isso, a atriz teria ficado desnorteada, dizendo não saber onde estava em termos de lugar da fala, de ponto de vista, que em sua visão, a princípio, não deveria ser o seu. E ao que tudo indica, Coutinho queria que ela se apropriasse da fala como se fosse sua, desconstruindo, assim, o tradicional processo de construção do ator.

O resultado do trabalho de Fernanda foi elogiadíssimo - como aliás suas atuações costumam ser - mas pensando sobre seu suposto momento de dificuldade, digamos que tenha sido um movimento meramente natural de todo ator (e me incluo nisso!) de representar, de encontrar um distanciamento para uma voz que vai se revelar: a do personagem. Um procedimento que ocorre com praticamente todas as pessoas quando se colocam no lugar de narrador, aliás.

Lendo e relendo a matéria, às vezes fico sem saber direito ainda o nível exato de correlação possivelmente existente entre o conteúdo da matéria e o poema de Pessoa – você que me lê, pode me ajudar! -, mas me parece haver um ponto de encontro nítido, feliz e muito mais denso do que parece. O poeta descreve não só o fazer do poeta – e isto escrito por um extraordinário criador de heterônimos que ele foi -, como também o processo comum de todo artista, que é desafiado neste documentário intrigante e instigante de Coutinho. E eu nem o assisti ainda!

Os tais momentos da entrevista que tentei trazer aqui - e que provocaram na minha mente pequenas reflexões-síntese que elaborei abaixo - ao fim e ao cabo muitos já elaboraram e, certamente, de maneira muito melhor. Ei-los:

A verdade é antes do que é ou possa ser, factualmente, a verdade, aquilo que se sente verdade. E a experiência da arte favorece imensamente tal raciocínio.

Transformam-se os suportes (oral, impresso, livro, blog...) mas a necessidade humana de histórias permanece.


Izak Dahora

3 comentários:

Louise Peres disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Louise Peres disse...

Izak, querido!

Gostei muito do teu blog (já tinha visitado antes, sim), e especialmente desse texto. Muito instigante, fala de coisas sobre as quais eu também a-do-ro pensar.

A dramatização nos oferece recursos que, quando bem utilizados, são realmente de um poder de convencimento impressionante.
"Uma versão imaginada, ficcionalizada, que é mais verdadeira que a própria verdade." Minha monografia teve muita relação com essas questões, sabia?!

Podíamos conversar sobre isso. Assunto pra muitos dias! hahaha

E o filme é maravilhoso, não deixe de ver!

Parabéns pelo blog e continue produzindo!

Beijos!

CECILIA RANGEL disse...

Dahora, assisti esse documentário do Coutinho, já faz um tempo, no Canal Brasil. Também fiquei impressionada com tudo, principalmente com a participação da Fernanda Torres (genial).
Fica gravada a pergunta: qual o limite entre ficção e realidade?
Beijos!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!