quinta-feira, 29 de outubro de 2015

100 anos de um artista genial!



Já escrevi por aqui que flerto de modo contumaz com o passado. Escrevi isso ao narrar minhas lembranças do Carlos Manga, que partiu recentemente, figura que, aliás, dirigiu grandes sucessos do meu homenageado deste texto, Grande Otelo.

Mas minha referência a Otelo como alguém do passado é tão-só porque ele, quando nasci, viveria apenas cinco anos mais. Apenas por isso. Passei toda minha infância ouvindo memórias de infância do meu pai (principalmente) e da minha mãe sobre suas atuações em shows e em programas de TV. No início da adolescência, contudo, e felizmente, eu mergulharia de vez na obra desse grande artista. E viva o Canal Brasil, que com seu acervo, deu-me a possibilidade de assistir a Otelo ao lado de Oscarito nas "chanchadas" da Atlântida e muitos filmes mais. Otelo trabalhou em outras daquelas produtoras da época, como a Herbert Richers, onde fez, dentre outros trabalhos, "Um candango na Belacap", que é um dos meus filmes prediletos com o ator, filme do querido Roberto Farias (por quem também fui dirigido, assim como por Manga. Que sorte eu tenho!). Neste filme do início da década de 1960 (fase derradeira das chanchadas) e que tem a construção de Brasília como pano de fundo, Otelo está impagável, maduro e pleno de seus recursos. Seu número com a uruguaia Marina Marcel sobre "preto com loira" é formidável! Uma eficiente e divertida parceria de Otelo com o  e acrobático Ankito. Otelo estrelou muitos filmes e efetivou nas telonas um esquematismo da comédia (no teatro e no próprio cinema): as duplas. Oscarito, Ankito e também  Ronald Golias foram seus parceiros, com destaque inigualável para o primeiro.  

Eu descobria Otelo e o queria ver mais e mais na tela do Canal Brasil como quem é fã e contemporâneo de um determinado artista. Por isso não faz mesmo sentido considerá-lo alguém do passado: a referência de Otelo me é fundamental, fui (e sou) nutrido por aquele artista múltiplo e de uma possibilidade  ímpar em cena: para além de cômico, foi um especial ator dramático, como em "Rio Zona Norte", de Nelson Pereira dos Santos, drama modelar de um sambista do morro, talentoso e pobre explorado pelo sistema; maleável e com a experiência do subestimado teatro de revista deslocava-se em cena com a agilidade de um dançarino (que era); cantava; compunha ("Vão acabar com a Praça Onze", parceria com Herivelto Martins); e em "Assalto ao trem pagador", outro filme do já mencionado Roberto Farias, um clássico do cinema brasileiro, atual até o presente 2015, e no qual há uma cena que me emociona toda vez a que assisto - quando o personagem de Otelo, um morador do morro, integrante da facção criminosa que rouba o trem pagador, fala sobre a miséria de quando se morre uma criança no morro. Aquilo é de chorar e sai da boca de um ator tragicômico interpretando um bêbado embriagado de lucidez e de olhos comovedoramente esbugalhados.


Ao longo da adoslescência fui caminhando no teatro e conhecendo a história do Otelo dos palcos, figura importante no teatro de revista e no entretenimento, no show-business; da Companhia Negra de Revistas do empreendedor Jardel Jércolis ao lendário cassino da Urca. Um artista múltiplo  (que cantava óperas, financiado pela tutora, na infância, e escrevia poemas) e que foi o primeiro negro de grande reconhecimento popular neste país.


Também havia o preconceito de cor que tanto sofreu nos vários lugares onde brilhou...Mas sobre isso não escreverei aqui. Nem de seus problemas pessoais. Quero brindar à vida e a presença de Otelo na história do teatro, da TV, do cinema e do meu imaginário.
Quero brindar a Otelo em "Macunaíma", que segundo uma sintética e sensível versão do próprio - um intelectual - e em entrevista não me lembro para quem,  representava uma espécie de elo entre a chanchada e o cinema novo, dois grandes momentos do cinema brasileiro - por motivos opostos, e que, por ideologia e certo preconceito, não poderiam aproximar-se um do outro, na visão de muitos, mas que Joaquim Pedro de Andrade soube combinar, vendo na obra de Mário de Andrade, prospectada no Brasil profundo, um material que revela nosso espírito e vadio irreverente de país tropical e nossas mazelas e incoerências de povo colonizado.
Quero brindar a Otelo respeitado por Orson Welles, que disse que nosso Great Otelo (seu nome foi criado por Jardel Jércolis) era o melhor ator do mundo.
Voltando mais no tempo, quero fazer uma libação a Otelo em "Matar ou correr", "Dupla do barulho", até o Seu Eustáquio da "Escolinha do Professor Raimundo", programa da minha infância, em que Otelo não tinha um papel da sua estatura artística, mas que, de forma nostálgica, era como homenagem ao seu talento e verve pueril com aquelas caretas de antigas peças e filmes "Aqui! Qüi queres?").


Apesar do Brasil ser um país não muito afeito à memória do seus grandes nomes, o nome desse artista resiste, como no texto deste fã que se tornou artista tendo-o como ícone. Resiste, apesar dos pesares, como o estado de precariedade do teatro que leva seu nome em Uberlândia (antiga Uberabinha), sua cidade natal.          
         
Otelo é referência Artista que reunia as grandes "escolas" na fomação de ser de palco no Brasil e em qualquer lugar: o circo, o teatro, o cinema. Um dos maiores artista brasileiros do século XX.
Falar de Otelo é falar sobre o meu presente porque é das referências permanentes. Quando eu fazia o meu Saci, lá no Sítio do Picapau Amarelo, pensava muito nele!
Neste mês de outubro, no dia 18 de outubro, Grande Otelo, se vivo estivesse, faria 100 anos. Mas, com todo o seu legado, quem disse que ele não está entre nós! 

sábado, 3 de outubro de 2015

Na turnê de "Contra o vento", uma experiência de Amizade com o público de BH

Como atores, somos canais de ideias, sensações, energias, emoções.
Afinamos nosso instrumento para chegar até as pessoas num jogo, o do teatro, que é concreto, físico, mas cujas consequências e ressonâncias são da ordem do intangível, do imensurável. Participamos de uma comunhão que se renova a cada dia/noite e, por mais que tenhamos a responsabilidade sobre uma partitura ou estrutura cênica (exaustivamente ensaiada) que devemos sempre introduzir, encaminhar e sustentar, precisamos do público para a sua efetiva realização e seu aprimoramento constante. Sem o retorno imediato do dele, não sabemos qual o exato alcance das propostas que idealizamos ou de que somos intérpretes.

Domingo, dia 27/9, tive a oportunidade de participar, junto do diretor (Felipe Vidal) e dos meus colegas atores do espetáculo "Contra o vento - um musicaos", de um bate-papo com estudantes de teatro do Colégio Pedro II, de Belo Horizonte. Fomos conhecer parte do público que nos assistiu na terceira temporada da peça, em cartaz em Minas Gerais durante o mês de setembro. E fomos surpreendidos, em um domingo à tarde, de imenso calor, por uma turma igualmente aquecida, generosa e interessada.
Os estudantes em questão integram o ''Palavra Viva'', grupo dedicado à prática do teatro e que interage com propostas locais de contrapartidas sociais e formação de novas plateias promovidas pelas produções teatrais. Neste caso, fomos apresentados ao "Palavra" pela produtora Maria Mourão, integrante e também atriz do coletivo belo-horizontino 4Los5, com quem trabalhamos durante a temporada mineira de "Contra o vento". 
O condutor e professor do grupo, que chama Róbson Vieira, uma figura doce e disciplinadora, é como que saído daquelas narrativas legítimas de um romance de formação: sujeito simples, de cabelos compridos amarrados, denunciando que por ali já esteve (e continua existindo) alguém movido por idealismos, ser portador de fala mansa e firme, e de um imenso respeito pelo próximo e pelo saber. Um educador e humanista. Um professor daqueles que influenciam nossas escolhas, marcando nossa juventude e de quem costumamos lembrar para toda vida. Antes de entrarmos em sala, pudemos perceber o seu pedido de silêncio e a exortação a que os alunos nos recebessem com palmas - efusivas, afetivas e hospitaleiras palmas.
Robson abriu aquele encontro apresentando para nós o conceito e o sentido do teatro para o grupo com duas palavras que muito me tocaram: a "amizade", norteadora do princípio ético de convivência por eles mantido em sua "travessia". Ouvi-lo falar me deixou fascinado, pois com aquelas duas palavras emoldurou, a meu ver, uma imagem ideal e possível do teatro: um lugar onde nos reunimos por afinidades (do grego philia), dando-nos um sentido de pertencimento no mundo capaz de nos manter na luta constante pelos nossos sonhos (que, ansiados coletivamente, tornam-se ainda mais poderosos e possíveis), e num entendimento da vida como um caminho, ou "Travessia", a ser percorrido - Róbson, como um bom mineiro, fez uso, coincidentemente ou não, de termo consagrado na literatura brasileira pelo mineiro de Cordisburgo Guimarães Rosa, no seu "Grande sertão: veredas".

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Um rápida digressão.
O sentido ético que nutre o "Palavra Viva" cristalizado na amizade, incitado por seu professor, fez-me lembrar de Giorgio Agambem, filósofo italiano que no livro "O que é o contemporâneo?" resgata o sentido de filosofia no tempo dos antigos. Explica ele que na Grécia pensamento e amizade eram valores estreitos, relação presumida. A própria filosofia, em sua etmologia, contém a amizade (filo=afinidade ou amizade + sofia=saber). Ou seja, a construção do conhecimento chamava a prática coletiva, amistosa, e vice-versa.
A este pensamento fui instado pelas palavras generosas do professor Robson. Que positividade para o mundo vermos estética e ética andando de mãos dadas! Todo o saber teórico e sensível do teatro fustigado pela amizade.
Aliás, que coincidência, tive na minha adolescência um professor Robson (Almeida) que todo dia batia na porta da sala de aula para dizer coisas como "Trate as pessoas como gostaria de ser tratado", dentre outras, chamando-nos sempre, a mim e meus colegas e amigos, para irmos além de usarmos o ambiente da escola como lugar de saber científico apenas. O lugar do saber precisava, na visão dele, ser um espaço de sensibilização do humano.

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Pudemos perceber, meus colegas de elenco e eu, durante a conversa, o casamento entre a força do nosso espetáculo (cujo tema é a Tropicália, sob a perspectiva do Solar da Fossa, reduto atrator de jovens de ideias e comportamento transformadores nos anos 1960) e o ímpeto juvenil daqueles estudantes. Afinal, os tempos transcorrem mas a juventude parece mesmo estar sempre mais próxima dos sonhos, das descobertas, das diferentes formas de expansão das consciências e das revoluções.
Suas perguntas ajudaram-nos a esclarecer questões do próprio espetáculo, revelaram a percepção aguda para detalhes da representação, como o apontamento da música, da nudez e da fragmentação como potências definidoras do espetáculo. Fomos lidos por eles, jovens espectadores atentos que já haviam debatido as questões da peça em sala de aula durante a semana. Vários deles assistiram à peça diversas vezes.
Como ator, professor e pesquisador, fui pensando, ao vê-los, na importância dos caminhos da arte-educação. Em outro encontro com o público de BH, um frei (!) de Betim, que nos assistiu (também mais de uma vez, disse-nos preferir estudar a filosofia e a teologia através da representação de peças a ter que acessá-las por meio da gravidade e do silêncio que a experiencia dos livros pode comportar - ainda mais dentro do ambiente de contrição de um monastério.
O teatro, com o sensualismo que lhe é defindor (meio da ação, da palavra, do som, do visual...), toma-nos de assalto a sensibilidade, colocando-nos num jogo de interatividade e reflexão (epidérmica, emocional e intelectual). Mas há que se estar disposto para jogá-lo, pois, como já dizia o diretor polonês Tadeusz Kantor, "é impossível passar impune pelo teatro". É preciso coração e mente abertos!
Ao fim do encontro, quando os estudantes demonstraram sua expressividade através de músicas de sua própria autoria, movimentos coreografados e interpretação de textos (que me pareceram poemas), ficaram claros os efeitos de um trabalho continuado de formação ética e estética por meio da arte e, especialmente, do teatro, esta arte socializante por natureza. Seus versos eram como palavras de ordem, incitando a coragem, a determinação e a ousadia nos quais transpareciam a paixão pela arte e pelo teatro.                                            
Fazer teatro, de fato, é uma construção coletiva, um exercício de escuta (não só pelos que frequentam a cena, mas no jogo firmado entre palco e plateia), que  exige treino e reflexão - inclusive pelo público. Por isso, vejo que a assiduidade, a seriedade e o prazer com que o pessoal do "Palavra Viva" encara o teatro deverá conduzi-lo a ser um grande público de teatro - como precisamos disso! -, formado por cidadãos conscientes, sensibilidades porosas e, por que não, futuros atores, produtores e diretores. Ficarei muito feliz em vê-los com seu grupo no futuro, confirmando o ofÍcio e uma vocação.

A apresentação apaixonada  e emocionante feita por eles para nós, ao fim do encontro reafirmaram que a palavra poética e a música são poderosas armas - ainda mais quando reunidas. E assim eles portavam seus violões, versos, sorrisos e brilhos nos olhos.
"Inconfidentes" nas emoções encarnadas e vivas em palavras - imagino que o espírito mineiro deve ter-se feito presente -, transbordaram encantamento, fazendo-nos ter mais motivação para o nosso trabalho. Suspeito até que eles nos tenham surpreendido mais do que nós a eles.

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Escrever sobre arte, juventude, amizade, viagem, travessia e mineiros só poderia me fazer desaguar no Clube da Esquina:

"Porque se chamava moço
Também se chamava estrada
Viagem de ventania
(...)

Porque se chamava homem
Também se chamavam sonhos
E sonhos não envelhecem
(...)"