domingo, 6 de março de 2011

Maria Clara é Carnaval - a escola de samba e a escola de teatro.


Creio que o primeiro lugar a me mostrar a importância da simplicidade no teatro foi o Tablado. Sua mentora e realizadora Maria Clara Machado plantou a semente que dá frutos a olhos vistos já há muito tempo – em 2011 faz sessenta anos. São diversas as gerações de atores que se formam naquela escola, situada na rua Lineu de Paula Machado – não esqueço! -, que se orgulha de não ser profissionalizante, e sim amadora, com tudo que esta palavra tem direito, inclusive o amor, contido no radical da palavra.

Eu saía de São Gonçalo para o Jardim Botânico, onde fica o Tablado, pegava três conduções para ir e mais três para voltar, atravessava a Baía de Guanabara. Devia ter meus dezesseis anos. Ía disposto, retornava cansado tamanha a distância entre casa e teatro.

O Tablado era algo tão distante para mim, do ponto de vista geográfico, e também do sócio-cultural, que lembro que no início achava que jamais conseguiria me enturmar com aquela galera da Zona Sul. Hoje ainda continuo mais para suburbano do que qualquer outra coisa – por convicção -, porém aquela galera que frequentava as aulas da professora Bia Junqueira às cinco da tarde daquelas segunda-feiras me ensinou coisas valiosas. E a maior delas foi a ser mais simples para o trato com o palco, um aprendizado para a vida toda. Pois fazer teatro é ter um corpo sobre um palco diante de um público. Daí já se pode ter espetáculo, porque isso é, na verdade, o teatro. O quem vêm para além disso já é acessório. Fazer teatro é pisar descalço no chão e sentir a força que vem do centro da Terra; é permitir-se ao encontro com o outro no suor e na saliva, como diz Fernanda Montenegro; é questionar-se a todo momento (como cacoete de ofício) acerca das indagações infindas que um intérprete tem que se fazer para elaborar uma personalidade específica (que é o personagem)...e perceber que para isso precisa questionar a sua própria visão e conduta diante do mundo e da pessoas.

Sem esse despojamento, sem essa disponibilidade e entrega não há teatro, não há arte, aliás.
Sempre que a gente pesa demais, "sofistica" e até "eruditiza" demais pensando alcançar uma profundidade fica mais distante a interação clara, que envolve as pessoas, a começar pela própria trupe em cena, porque o teatro funciona quando é feito junto e quando há um equilíbrio e uma divisão generosa entre o que se pensa e o que se sente e quem faz o quê, caso contrário o que se assiste é a cenas lamentáveis de narcisismo.

A linguagem dos grandes artistas e criadores costumam mesmo carregar simplicidade, que parece ser a senha do infinito mundo de sonhos, ideias e valores contidos na arte.

No Tablado tive a oportunidade de ver e conhecer algumas pessoas ricas – sem meias palavras - com um comportamento absolutamente simples, humilde e devotado ao fazer teatro. Nesse momento o preconceito de suburbano receoso de ser destratado pela elite que eu tinha foi por terra – ainda que o Tablado seja um escola muito integrada a um universo Zona Sul de ser: extensão de amizades familiares, continuação de jogos no play dos condomínios do bairro ou das praias do Leblon e de Ipanema e da Lagoa.

Talvez mais do que teatro ou profundidade estética, simplicidade tenha sido e seja o que de melhor o Tablado proporcionu e proporciona à formação de jovens de diferentes gerações. Eu me sinto orgulhoso de hoje ver que passei por aquela escola, por aquele tablado.

Obs.: Neste carnaval, as obras de Maria Clara são enredo da Unidos do Porto da Pedra, outra escola que faz parte da minha história. Falarei mais dessa ligação nos próximos textos. Por ora digo que, com muita alegria e disposição, sairei no último carro alegórico do desfile da Porto, escola de São Gonçalo, onde nasci e fui criado – no bairro do Porto da Pedra. No carro sobre "O cavalinho azul", história singela sobre o poder da imaginação e da esperança que existe na criança – e de modo tão supreendentemente simples!



Izak Dahora

"Black Swan" - o retrato contraditório e sublime em como o artista pode se autodestruir.


Sempre admirei os bailarinos. Talvez nenhum artista tenha em seu ofício relação tão próxima com a liberdade do corpo como eles. Seus saltos, elasticidade, disponibilidade no espaço/tempo são de uma poesia fascinante, comevente e até misteriosa. Como os acrobatas e os trapezistas, os bailarinos são provavelmente os únicos seres do palco de que tenho conhecimento capazes de provar da sensação de "voar" a partir de si mesmo, dos próprios movimentos, seres alados, quase como pássaros.

Porém mais do que isso, digo que eles sempre tiveram o meu respeito, pois tanta leveza guarda rigor  extremo e também desgaste inevitável. A rotina e a dieta de quem dança é de uma disciplina metódica, minimalista, podendo ser tão rígida quanto algo militar – e de tanto trabalho, de apacidade de concentração num esforço repetitivo, de tantas dores e calos o resultado a que se assiste normalmente é de simplicidade e delicadeza. O balé prova – inclusive aos atores, dos quais faço parte, que o trabalho do artista envolve o sonho mas que para ser realizado é muito mais físico do que o contrário. Reforça a crença de que não existe arte sem uma forma, sem um corpo, sem um tônus vivo e concreto que se apresente, pois é pela carne que se trocam e se transmitem todas as emoções e ideias. A dança faz-nos ter a dimensão da necessidade e da vitalidade material da nossa condição – contradizendo Platão. Como ator que sou digo que poucos são os atores que levam a profissão com a seriedade de treinamento e reciclagem como os bailarinos. Normalmente perdem-se no glamour atroz das capas de revista e exposição midiática da tv - que são veículos importantes mas não não Arte íntegra. Os atores (grande parte) ainda não treinam o seu instrumento. Por isso, o povo do balé exemplo - e eu tento me inspirar sempre neles.

Mas sobre este "Cisne Negro" a que se pode assistir nos cinemas e que merecidamente , na minha opinião, faturou o Oscar  nas categorias diretor (Darren Aronofski) e atriz (Natalie Portman), digo que saí do cinema sem fôlego, atônito, me sentindo "mal". 
Mas um mal que no fim faz bem, porque o mal do descentramento causado por uma grande obra de arte. Trabalho extremamente competente, impecável de Natalie Portman numa narrativa por vezes até perversa no sofrimento de Nina, a protagonista, além de surpreendente e que, para além de todo e qualquer adjetivo que se lance ao filme, se assume como linguagem cinematográfica, por excelência: nossos sentidos se confundem à mágica da dança e da música, ao rigor desmesurado de muitos dos que buscam irrefreavelmente a perfeição da grande arte e comprometem a própria vida, à tensão permanente e às neurores da bailarina. É uma experiência profunda, emocional e fisicamente, já que Aronofski lança o espectador na mente confusa da personagem e faz de cada surpresa ou descoberta da mesma um susto para quem assiste. De modo que tudo é sentido na pele através de jogos de câmera "dançantes" e inquietos, fotografia tão sombria e sinistra quanto a vida de Nina a partir do personagem Cisne Negro emsua vida e da música. 

Creio que vale dizer que para quem é artista a experiência de assistir a esse filme é  especialmnete catártica, pois, ao contrário do que muitos dizem a respeito de Cisne Negro, concordo não ser preciso dilacerar a própria vida  em nome de uma estética ou da glória mas penso que o que se assiste  neste longa é um  retrato possível do que o artista pode acabar passando. Afinal, o que artista quer é agradar, e nisso impõem-se sacrifícios e renúncias imensuráveis - por muitas vezes vende-se por quase nada chantageada pela mente de diretores excêntricos, "sanguessugas" e megalômanos. 
A criação mexe com o psiquismo do artista e este pode ver-se de repente totalmente perdido. Nosso ofício lida com aceitação e rejeição, e uma opinião pode levar-nos ao mais profundo desampraro. É preciso ter cuidados com o artista. A linha entre o "surto" e delírio criativo e a loucura é tênue, dessa área fronteiriça pode brotar grandes obras como também a inércia "vegetativa" de uma frustração particular. É a esta fragilidade que o artista estará sempre exposto.   

E o filme deixa pulsante também uma questão que me ocorreu ainda durante a sua exibição: não seria o universo das bailarinas tão ou mais cruel que o hoje tão criticado mundo das passarelas? Não que isso redima a cobrança sobrehumana feita sobre as top models, mas o agravo para o balé seria o fato de a dança e seu rigor existem há muito mais tempo, tornando neuróticas as mentes de muitas jovens em realidade de competitividade invejas mútuas e redes de intrigas pela insegurança fustigada pelo meio que quer intérpretes cada vez o que se quer: inclusive servir de objeto sexual a quem pode conceder oportunidades - no caso do filme o diretor da companhia.
 
No ano passado, nós, os apaixonados por arte e por cinema, fomos agraciados com O segredo dos seus olhos que descrevo como belíssimo. E agora Cisne Negro , permitindo-me ao simplismo das adjetivações considero sublime. A imagem crepuscular da bailarina falecendo na última cena - e que intuitivamente me remeteu num certo sentido à personagem Norma Demund, a atriz-diva decadente de Crepúsculo dos Deuses -é paradoxal: mostra a ascenção para a glória ao fim do movimento final de peça para pouco intérpretes no mesmo tempo em que é ocaso, uma vez que a personagem deixa claro que não há mais fôlego para a vida. É o salto do triunfo e a descida à morte. Ao mesmo tempo. Um movimento paradoxal que desafia a própria lógica.

Na contradição da solidão perigosa do artista é que vejo onde está o grande mérito de Cisne Negro. Nesse caos existencial da personagem e formal da estética fragmentada e trepidante   sua eloquência.







Izak Dahora