Imagem 1: Abre-alas da Grande Rio. Uso intensivo e dramático da iluminação e balões como seres marinhos. Fonte: Carnaval do Rio.
Desfile de escola de samba é teatralidade, mas não apenas teatralidade. É, antes de qualquer definição, expressão das verdades e códigos culturais dos grupos humanos que a praticam. Grupos tradicionalmente mantenedores de valores ancestrais de cosmopercepões afrodiaspóricas (e também ameríndias), que se materializam em forma ritual e que, para tal concretização, utilizam-se de elementos estéticos.
Em contexto em que manifestações de racismo religioso proliferam, as
escolas de samba, como instituições dinâmicas que são, nascidas da negritude carioca e
atentas à sociedade, voltam-se para seus valores mais essenciais. Considerado isso, tal movimento de resgate e afirmação dos próprios valores é compreensível, necessário e político (no melhor e
mais amplo sentido do termo).
Diversas escolas afirmaram ser macumbeiras, quilombos ou de terreiros (e devotadas às suas divindades já comumente apresentadas) em seus sambas-enredo neste ano - a começar pela Unidos de Padre Miguel, que abriu os desfiles de forma imponente na visualidade, madura na organização e com um belíssimo samba ("Vila Vintém é terra de macumbeiro").
Mesmo quem não pratique ou não se interesse por esse universo cultural, pode(ria) desenvolver consciência mínima acerca
da gênese da instituição escola de samba e do quanto sua fé é pressionada por
projetos colonialistas há, pelo menos, cinco séculos. A produção cultural das Escolas - vale sempre destacar o termo proposto por Ismael -, ano a ano, é, portanto, ao mesmo tempo proposição, ensino, resposta e interação ao que ocorre na
sua comunidade, na cidade, na sociedade (brasileira) e no mundo.
Magia e técnica
Há quem veja arte e tecnologia como inconciliáveis. Doce engano. Os desfiles provam que, equilibrada a dosagem de cada um desses elementos – e, fundamentalmente, se a técnica estiver a serviço do que se sente, pensa e propõe –, ambos foram e serão sempre íntimos um do outro. Assim têm sido também ao longo da História da arte, do teatro, do espetáculo.
Neste sentido, a magia do teatro ritual das escolas de samba é
particularmente encantadora, como o que a Viradouro exibiu em seu abre-las,
cuja holografia diante do protagonista Malunguinho sugere o mágico e o transe por
ele acionado de maneira tão verossímil. Outro exemplo é o uso intensivo
que a Grande Rio fez, mais uma vez, da iluminação, desta vez para traduzir a
tormenta marítima geradora do naufrágio das três princesas turcas do enredo assinado por Gabriel Haddad e Leonardo Bora. A junção de
iluminação, movimento e atuação foi algo perturbador, conforme o mito narra e
sugere.
Ainda no domínio de arte/tecnologia, houve também os chapéus da comissão de frente da Viradouro (dos coreógrafos Priscila Mota e Rodrigo Negri) - no contexto mágico e espiritual da ancestralidade do samba - e as pipas da comissão de frente dos "crias" da Mangueira (dos coreógrafos Lucas Maciel e Karina Dias). Em ambas as comissões havia a operação de drones para tais efeitos combinados à potente expressividade corporal de bailarinos.
Imagem 2: Arte da Rio Carnaval em que se pode observar
a holografia diante da representação escultórica do líder quilombola Reis
Malunguinho. Fonte: Rio Carnaval.
O desafio da escola de samba é usar da técnica sem perder a "aura", a autenticidade, como diria o filósofo Walter Benjamin. A experiência da escola de samba, que é fenômeno que nos restitui a percepção de nossa presença, de nossa existência encarnada, do congraçamento coletivo e da catarse. A nossa tragédia. A nossa comédia. A nossa ópera.
Os mais variados teatros (dos oficiais aos marginalizados) normalmente demandam e produzem técnica para tornar seus conteúdos possíveis. A produção do encantamento demanda técnica. Os desfiles nos provam isso a cada ano com suas equipes de projetistas, engenheiros e demais técnicos que tornam palpáveis ideias e sensações artísticas.
Mesmo quando assentada de modo fundamental no corpo – o corpo que samba! - a expressão requer e desenvolve um saber, ciência. No desencanto da sociedade capitalista pós-industrial, as ESCOLAS de samba nos ensinam que o fabrico do encantamento engendra mistério e razão.
Polêmica e teatro
Protagonista daquela que foi, talvez, a maior polêmica do carnaval –
desdobrando o debate sobre a presença, para determinadas pessoas, ostensiva de enredos afro ou sobre negritude –, o que se pode afirmar do carnavalesco da
Vila Isabel, do ponto de vista artístico, é que ele foi na Avenida um Paulo Barros em
estado puro.
Assistimos a recursos que, embora já conhecidos do carnavalesco, demonstraram neste ano combinação feliz com uma Vila leve e brincante – Vila que, de modo curioso, tem histórico e perícia em enredos-afro marcantes, como Kizomba, festa da raça. A questão que fica para mim é de talvez uma difícil compatibilidade entre carnavalesco e escola. Entretanto, dialogando com ícones da cultura de massa e do cinema hollywoodiano, efeitos "barrianos" como cadafalsos que se abrem e fecham, revelando e escondendo integrantes; elementos humanos complementando, formando e informando alegorias por meio de sua presença e movimentos estiveram atuantes. Exemplo disso foi a representação do mar e seus seres marinhos em uma das alegorias. O arranjo da direção musical com constantes desenhos de sanfona causou também efeito singular e curioso ao desfile.
Mesmo sempre questionado por seu descolamento de um ideal mais
tradicional de escola de samba, o fato é que Paulo Barros, naquilo que sabe e
gosta de fazer, tende a carnavalizar e parece ainda encontrar um espaço para si e para o seu público.
Cabe dizer que a polêmica gerada pela fala de Barros é complexa, atravessada por equívocos e precisa ser refletida com muitas nuances. Vale um texto exclusivo, o que não é o foco deste que você lê agora.
Metalinguagem e "falar de si"
As duas escolas mais tradicionais
e mais famosas, Mangueira e Portela, uma por conteúdo e outra por forma, trouxeram
elementos que falam sobre a própria escola de samba, o que, aliás, as
agremiações fazem bem – e isso não é uma crítica nem ironia; é político e
identitário falar de si.
O paulista Sidney França propôs enredo cariocentrado ao abordar a presença
física e simbólica bantu na constituição do Rio de Janeiro – e do Brasil.
Abordar os bantus (maior parte das levas de africanos e africanas escravizados para
o país), que foram objetificados e mortificados "à flor da terra" (referência
aos inúmeros cadáveres que ficavam expostos no "cemitério"/depósito de escravizados),
sobretudo nos arredores do cais do Valongo (a "Pequena África"), é abordar a própria essência das
escolas de samba, cujo termo "samba" e sua ancestralidade provém do grupo etno-linguístico bantu e
deriva do termo quimbundo "semba" (umbigada).
Imagem 3: Representação de "cria" da Mangueira triunfando na Sapucaí.
Fonte: @leoqueirozfoto para Rio Carnaval (@riocarnaval).
Portela, proposta por André Rodrigues e Antônio Gonzaga, encontrou o seu garbo, altivez e tradicionalismo característicos na homenagem ao compositor e cantor
Milton Nascimento, nascido no Rio mas esculpido (em corpo e voz) entre as montanhas de Minas, entre toda a tradição do Barroco mineiro, crenças e formas religiosas (de
oratórios, altares, andores, porta-estandartes) assim como dramas populares (como
congados e demais procissões afro-católicas). O que é uma escola de samba senão
uma procissão de base negra de feições sagradas e profanas?
Passarela como terreiro
No carnaval das (doze) apresentações divididas em três noites (mudança justificada
pela organização para uma iluminação por igual a todas as apresentações),
prosseguimento ao uso de iluminação específica para cada desfile e ampliação do tempo de desfile
de 70 para 80 minutos por escola, tripés alegóricos foram reafirmados como
palcos das comissões de frente, sob diversos modos, demonstrando possivelmente uma busca de
uso mais intensivo e espacializado da iluminação, elevação da altura em relação às arquibancadas e recursos/soluções cênicas por meio de sua estrutura interna e externa, além de variação das possibilidades narrativas entre baixo/chão e alto/tripé.
A coreografia dos casais de mestre-sala e porta-bandeira também seguiram buscando adequação de movimentos aos enredos, como nos últimos anos. A mim me chamou a atenção a assimilação de elementos coreográficos do carimbó pela dança do primeiro casal da Grande Rio (Daniel Werneck e Taciana Couto). Que dança vigorosa e criativa.
Este texto não tem a finalidade de abordar elementos de todas as escolas, mas de destacar momentos ligados, sobretudo, aos aspectos teatrais, cênicos e performáticos da edição de 2025 dos desfiles das escolas de samba do Grupo Especial (RJ), que se destacaram aos olhos deste pesquisador, de onde este os podia observar. Sempre faltarão momentos e mesmo escolas citados em um texto como esse.
Cabe não esquecer que enredos e momentos como do desfile sobre Xica Manicongo (assinado por Jack Vasconcelos), a primeira travesti do Brasil documentada, são históricos, tanto pelo ineditismo quanto pela relevância da causa social em país que mais mata pessoas trans no mundo, além da intensidade performática e dramática apresentada já na comissão de frente. Além do mais, se escolas de samba são espaços plurais, que acolhem em seus espaços o negro, a mulher, a comunidade LGBTQIA+, é preciso que suas temáticas façam o mesmo.
Na teatralidade ancestral e ritual da escola de samba, em ano de particular e ainda mais intensa presença da temática religiosa afro, agremiações reafirmaram o encantamento das cosmopercepções afrodiaspóricas, que faz de cada desfile um grande terreiro, como a comissão de frente da Beija-Flor (desenvolvida por Jorge Teixeira e Saulo Finelon, coreógrafos, e Veronica Valle, designer) exemplificou para representar o diretor de carnaval Laíla (Luiz Fernando Ribeiro do Carmo, 1943-2021), um sinônimo de escola de samba. E no mesmo ano da despedida do intérprete Neguinho da Beija-Flor. Ou seja, no carnaval 2025 não faltou emoção.
Imagem 4: Representação de Laíla no desfile da Beija-Flor. Fonte: Alex Ferro / Riotur.
Termino lembrando do que disse um griot: "quando não souber para onde ir, lembre-se de onde veio". A mim me parece que foi mais ou menos isso que as escolas procuraram fazer neste ano. Com a diferença de que elas hoje sabem muito mais para onde pretendem ir do que alguns anos atrás.
Izak Dahora
Imagem 5: Visão da Marquês de Sapucaí.
Fonte: Rio Carnaval.
*Desfilaram no Grupo Especial de 2025 (RJ) as escolas Unidos de Padre Miguel, Imperatriz Leopoldinense, Viradouro, Mangueira, Unidos da Tijuca, Beija-flor, Salgueiro, Vila Isabel, Mocidade Independente de Padre Miguel, Paraíso do Tuiuti, Grande Rio e Portela
*Esta publicação não tem fins comerciais.
Referências:
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Tradução: Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.