terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

O carnaval pra mim - um desfile de personagens e memórias.




Fui criança durante os anos 1990 e aprendi a gostar de escola de samba assistindo e ouvindo os comentários nas transmissões de TV feitos por figuras como Albino Pinheiro, Leci Brandão, Mauro Monteiro, Maria Augusta, Haroldo Costa, Fernando Pamplona. “Essa gente do carnaval” e de muita bagagem cultural ajudou a moldar as minhas preferências não só culturais como também estéticas. Lembro do Fernando Vanucci narrando os desfiles (aliás, “alô você?!”, por onde anda?); recordo das muitas vitórias de Imperatriz e Mocidade daqueles anos através da sua narração.

Por falar em Imperatriz, esta participou da modelagem do meu gosto, digamos assim. Os enredos assinados por Rosa Magalhães para a escola de Ramos me fizeram perceber de forma ainda bastante intuitiva que cada desfile é uma narrativa, um manancial de conhecimento e cultura, portanto coisa muito “séria”, ao contrário do que muitos ainda tentam afirmar, ao tratar a manifestação das escolas como algo folclórico, no sentido pejorativo do termo. Dona de uma vasta formação acadêmica (Belas Artes-UFRJ e cenografia-UNI-Rio), Rosa, filha de intelectuais (seu pai Raimundo Magalhães Júnior foi integrante do júri do primeiro desfiles oficial das escolas de samba em 1932), demonstrava através de seus desfiles (verdadeiros achados sobre a história do Brasil) nossa potência nacional de cruzamento entre o “popular” e o “erudito” que decorre da configuração mestiça ou híbrida de nossa gente, habitante dessa “Nova Roma”, como chamava o Professor Darcy Ribeiro – idealizador do “sambódromo”.  

Creio que em boa parte por causa/”culpa” da Rosa, minha imaginação já  ultra fértil de filho único rumava em definitivo e sem regresso ou medidas para o interesse pelas artes, pela interação entre diferentes formas artísticas em simultâneo, pela leitura como base essencial de toda criação e pela fé na pesquisa como alimento vital para a renovação do artista – só poderia mesmo vir a fazer um mestrado tendo como objeto os desfiles das escolas de samba - e sua teatralidade -, concluído em 2014.

Enredos como “Catarina de Médicis na corte dos tupinambôs e tabajeres” (1994), “Mais vale um jegue que me carregue do que um camêlo que me derrube, lá no Ceará...” (1995); “(...) Leopoldina, imperatriz do Brasil” ou “João e Marias” (2008), só para citar alguns, me ensinaram a ter mais consciência e até mais orgulho do Brasil, a  respeitar e amar os índios, ou a entender nossas misérias mais profundas, assim como admirar as escolas de um modo geral. Um enredo como “Áfricas, do berço real à corte brasiliana”, da Beija-Flor (2007) me faz, a cada vez que lembro, ser mais negro por me permitir enxergar a luta e a beleza do povo de África que foi aqui escravizado e tão estigmatizado. Os enredos que menciono geraram sambas marcantes.

Indelével na memória é o  “Explode coração, na maior felicidade...” do enredo “Peguei um Ita no norte”, Salgueiro (1993), que na época me deixou fascinado pela escola. Revejo agora as bandeirinhas tremulando já no setor 1 da Avenida, diante daquela passagem arrebatadora, em um ano em que o samba (fácil e saboroso) impulsionou um enredo que não era apontado como favorito.  Guardo imagens da transmissão daquele desfile ainda nas retinas e, mais uma vez, a TV, elemento forte na minha geração, mostrou-se importante mediando e tornando possível o encontro de boa parte dos novos amantes do carnaval com as escolas. O encanto por aquele tipo de desfile leve, maneiro e com um espírito bem carioca, em função especialmente pela voz do Quinho, intérprete que marcou época na escola (e desapareceu!), tornou-se convicção, quando anos mais tarde, nas minhas leituras fissuradas sobre história do carnaval, descobri que o "Sal" ("nem melhor, nem pior, apenas uma escola diferente") fora o responsável nos anos 1960 pela consolidação do encontro entre artistas de formação acadêmica e os artistas do morro e dos barracões. Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues foram os mestres em um “laboratório” estético por onde passaram discípulos "de futuro": Rosa, Max Lopes, Joãozinho – o Trinta! -, Maria Augusta, Lícia Lacerda... No momento em que tomei consciência disso, um mundo tornou-se possível e irresistível para mim tamanha a quantidade de estímulos que esse modelo de carnaval proporciona: a começar pela junção entre alegria e conhecimento, erudição e brincadeira, zona norte e zona sul, em uma dinâmica que vai além e quebra paradigmas e dicotomias, pois quem ousa dizer que não pode haver sofisticação cognitiva, por exemplo, em um corpo que se mantém em equilíbrio e em plena fruição do domínio rítmico no ato de sambar?
Em meus delírios carnavalescos mais profundos, ouço uma orquestra de violinos e repiques e surdos e tamborins...

Fecho os olhos. “Big Bang” do J. Trinta na Viradouro (1997), com uma entrada toda escura na Avenida; a Mocidade high-tech (dos néons, das formas vazadas e das trupes circenses nas alegorias criadas por Renato Lage, como em “Criador e criatura, de 1996, que trazia ainda a voz poderosa de um iniciante Wander Pires cantando “a mão que faz a bomba, faz o samba/Deus faz gente bamba”; o “Chico Buarque da Mangueira” (1998), ovacionado pelo público; os sambas da Portela sobre Olinda (97) ou o seu “gosto que me enrosco” (95) na voz do Rixa (cadê o Rixxah? Que voz!); alguns sambas da Ilha (como a homenagem a Pièrre Verger, em 98, e a Barbosa Lima Sobrinho, em 99), outros da Grande Rio; a Vila me ensinando Revolução Francesa antes do colégio, em 98, e na voz do Gera (sempre de óculos escuros, muito bom puxador!);  as coreografias clássicas do Fábio de Melo para a Imperatriz da fase Rosa Magalhães ou as primeiras feitas por Carlinhos de Jesus para a Mangueira, com bastante malandragem; a mitologia e o lirismo do “Orfeu” da Viradouro (98); a fase do Dominguinhos na mesma escola de Niterói, cantando muito; na Mangueira, o sorriso e a voz rouca de Dona Zica e a candura de Dona Neuma; o mau-humor engraçado e o peso da interpretação de Jamelão, o maior dos intérpretes; “O dono da terra” da Tijuca (1999), enredo desenvolvido por Osvaldo Jardim e samba entoado pela aguda voz de David do Pandeiro (cadê ele?); o crescimento da Porto da Pedra, fazendo meta-carnaval ao falar dos carnavais pelo mundo (96) e chegando nas campeãs, ao tematizar a loucura (97); a irreverência do “bar do Sargenteli”, repleto de mulatas(!), nas coberturas da extinta TV Manchete narradas pelo Paulo Stein... Muitos carnavais... Tô ficando velho...

Abro os olhos. Um repertório infindo de lembranças, imagens, sensações e descobertas que as escolas me proporcionaram...



Abre-alas do Acadêmicos do Salgueiro (1993). Enredo assinado por Mario Borrielo.


E assim venho eu, tendo o carnaval como sinônimo de escola de samba, e vice-versa. Respeito quem curte ouvir rock, ou axé, ou, peremptoriamente, viajar para fugir da cidade nos dias de Momo, mas folia pra mim é escola de samba e no Rio de Janeiro.

Confesso que tenho um pouco de preguiça para as grandes aglomerações dos blocos, ainda que os ensaios de quadra não sejam muito menos intensos no corpo a corpo e isto seja muito saudável. Reconheço o protagonismo que os blocos concedem ao folião, que pode elaborar o próprio discurso e a própria fantasia, e com bem menos gastos, mas sou  mais afeito à organização operística das escolas, que gera uma experiência estética singular na folia daqui e de alhures: nossa maior manifestação artística tem caráter popular! Dá-se no carnaval, a céu aberto!

Comecei a contemplar as escolas junto ao portão da vila onde morava em São Gonçalo. Por entre o gradeado, via os componentes da Porto da Pedra, carregando suas fantasias em direção aos ônibus que os levariam de São Gonçalo à Marquês de Sapucaí, vencendo a distância da Ponte Rio-Niterói. À noite, veria todo mundo pulando e brilhando de alegria e suor pela TV. Minha paixão pelo carnaval e pelas escolas começou lá, no bairro homônimo àquela escola e em tenra idade, desse modo. Tempos depois, eu me converteria em desfilante apaixonado e protagonista desse desejo e dessa paixão, não sendo mais um mero espectador.
(Poucos prazeres são pra mim tão singulares quanto poder caminhar na Avenida Presidente Vargas com a maior tranquilidade nos dias de desfiles e sem a menor preocupação com trânsito. Viva a suspensão e a inversão carnavalescas sobre a ordem cotidiana!).

A propósito ainda das minhas circunstâncias carnavalescas primeiras, não posso deixar de registrar: nasci em fevereiro, normalmente cumpro meus anos em dias de foila, senão em dias próximos. Minha mãe conta que quando seguiu para a mesa de parto, ainda um pouquinho tonta por conta de algumas Malzbier(s) que apreciava nos dias de carnaval, o obstreta falou: “Logo hoje?! Mal acabei de sair do desfile da Portela!” Pois é. Era eu querendo sair e pular o carnaval! Nascia eu no ano de "Kizomba, a festa da raça", da Vila Isabel, em 1988! Salve Zumbi, salve a Vila, salve Martinho!

Voltando ao lado mais intelectualizado da festa, nos pensadores e artistas que ajudaram a fabular e a forjar nossa cultura a partir de dados concretos de nossos hábitos, como os modernistas Osvald de Andrad e Di Cavalcanti ou o tropicalista Hélio Oiticica, o carnaval e o samba, junto de demais festas de congraçamento popular, são manifestações de fundamental importância na cimentação de nossa identidade, e revelam traços de nosso comportamento diário (nossa potência, nossas tensões, nossas mazelas, nossos preconceitos). Na brincadeira carnavalesca, tudo nosso se mostra com mais facilidade.

Os desfiles das escolas, a despeito de todas as contradições atuais  que a conduzem a um certo esvaziamento enquanto modalidade carnavalesca (como a elevada comercialização do "evento" que impede ou dificulta os próprios fazedores da festa de adentrarem o espaço da festa), continuam representativos, totalizantes (seja culturalmente, em sua rica abordagem de diversos temas que dizem respeito às diversas faces culturais do país, e não só da história social do samba; seja do ponto de vista artístico, com a utilização de todas as inúmeras formas de arte possíveis para a realização e o desenvolvimento, com grandiosidade, de cada enredo na Avenida.

Nietzsche e Wagner trataram do popular como um reservatório de forças e impulsos espontâneos de que a sociedade moderna se divorciou, apostando em uma relação racionalista e arbitrária com a cultura. Retornar àquelas forças seria vital para a renovação da arte e da cultura modernas, pautadas por valores comerciais e interesses pessoais, segundo aqueles pensadores alemães. No carnaval, renovo minhas forças de criatividade e alegria junto aos que encontram nesse período oportunidade potencializada de extravasamento desses impulsos autênticos, dessa ânsia e dessa fome de expressão (necessariamente coletiva) que me parece ser uma condição do incontrolável do humano.   

O carnaval das escolas, pra mim, essa arte do samba que evolui em avenida - sonhada um dia por Ismael e que tanto cresceu -, com o seu ritmo desconcertante (o samba) e com o sensualismo de sua profusão de formas e linguagens artísticas e tecnológicas seduz a minha imaginação desde sempre.