quarta-feira, 22 de julho de 2015

"Antologia do remorso"


“ANTOLOGIA DO REMORSO”: Em cartaz no Teatro Gonzaguinha, espetáculo marcado por simplicidade formal (centrando-se no jogo de um entrosado trio de atores), surge de coletânea de textos literários de forte inclinação (melo)dramática.

 

          Três cadeiras e três atores. É basicamente a partir desses seis elementos (apenas) que se constrói o espetáculo. Uma “Antologia” de cinco contos serve de base textual e a preservação do gênero literário dos mesmos é buscada pela encenação, que se utiliza de diversos expedientes para imprimir dinâmica dramática às narrativas.

          Antes de qualquer coisa, é preciso registrar que as cinco histórias possuem já considerável expressividade dramática, uma vez que suas situações e personagens são afeitas ao conflito e mesmo à desmesura, ao humor cáustico e ao patético encontráveis em muitos dos desejos e relações humanas. E nisso, vê-se inevitável aproximação de tal material “dramático” das histórias com o universo rodriguiano (em suas personagens, paixões e obsessões), que detalharemos mais adiante. Feita essa comparação que se demonstra movente na leitura do universo simbólico tratado pelo espetáculo, pode-se identificar, de modo mais preciso, a referência melodramática que o alicerça.

          O(s) texto(s) da autora Flávia Prosdocimi demonstra(m) buscar no recorrente uso do pretérito mais-que-perfeito (para falar de ação pretérita concluída antes de outra ação do passado ter se iniciado; ex.: contara, fizera etc) uma espécie de distanciamento imaginativo que reforce o caráter literário das suas histórias, o que em cena – de modo sagaz percebido pela direção – enfatiza o estabelecimento de um tempo relativamente anacrônico e por isso atraente (a sugerir os anos 1950, típico do universo de Nelson Rodrigues, junto à composição de um evocativo figurino burguês da mesma época). Porém, tal sensação de tempo pretérito das histórias desfaz-se e revela-se suficientemente atemporal devido ao repertório fundamental de acontecimentos abordados pelos contos que percorre as relações da “Comédia Humana” desde sempre: desejos, traições, vinganças, segredos, revelações... – alcançando e mantendo empatia com a plateia.

          Ainda sobre o texto, percebe-se nele eficiência enquanto conto e enquanto texto que serve à cena. Isto porque, respectivamente, os contos encenados estruturam-se de modo simples, com tramas concentradas e enxutas, curta duração e término que busca invariavelmente o surpreendente e o inusitado; e porque, no palco, tais contos, por conta de sua já mencionada verve apaixonada e de ações objetivas e claras, ganham interessante fluência no jogo cênico e na comunicação com o público. Note-se: um dos grandes “entraves” observados pela crítica na transposição do literário para o palco costuma ser justamente a carência do literário muitas das vezes (na verdade, a sua não obrigação) com a construção de um delineado fluxo de ação (que promova um arco de acontecimentos que se estenda de um estado inicial até uma transformação daquele), princípio básico de um entendimento mais convencional do dramático.      

 

Atuação e direção afinados em fazer do jogo dos atores o essencial

 

          No primeiro parágrafo foi citada a ocorrência de um conjunto de procedimentos operados pela encenação (de Daniel Belmonte) de modo a vestir dramaticamente os contos de Prosdocimi. Expedientes como a instauração de planos alto e baixo, e frente, médio e fundo para fins de geração de ação e movimentos; investimento dos estados de ânimo vividos pelos personagens à narração; exploração intensa dos diálogos (aspecto natural ao sentido convencional do gênero dramático); uso da técnica “coringa” (variação de atores no mesmo personagem), especialmente com mais liberdade a partir do segundo conto; construção de tipos desempenhados com vigor pelos atores. Tudo isso pode ser visto como demonstração de um dinamismo cênico imprimido ao material literário.

          Demonstra-se eficiente a solução do uso de cadeiras cujos assentos são, ao mesmo tempo, tampas que, quando abertas, revelam pequeno espaço guardador de objetos (como óculos, espanador e avental) a servirem como códigos definidores de novos personagens dentre os vários que aparecem nos contos.

          O trabalho gestual e de movimento corporal dos atores obedece um esgarçamento característico do exagero melodramático e é executado de modo reconhecível e equilibrado nas partituras dos três atores (Elisabeth Monteiro, Gustavo Barros e Tiago D’Ávila). A interpretação também dos personagens secundários, que abre de modo franco espaço para a composição de tipos, encontra no carisma da trinca, sem exceção, um dos pontos de maior sustentação e interação do espetáculo com o público. A vizinha maledicente, o filho afeminado, a empregada afetada ou o bêbado, dentre outros, conquistam a plateia com seus humores, dores e preconceitos – o riso do público garante que todos conhecemos essas personagens e suas histórias, pelo menos de modo parecido. E, mais uma vez, o universo de Nelson Rodrigues faz-se lembrar com “seus amores e seus pecados” burgueses e suburbanos – vide a fixação da mulher por um par de seios novos; a síndrome de marido traído acometida por um homem e a desconfiança sobre a mulher e os colegas de repartição; a mulher recatada que ao conhecer os prazeres do carnaval, abandona o parceiro fugindo com outro homem e quando volta encontra um marido resignado e submisso.    

          É com entrega, ritmo envolvente e despudor que o elenco, ponto central desse espetáculo, desenvolve seu trabalho. Destaque-se ainda a clareza entre os momentos de narração e os de falas/diálogo e ação, ou mesmo quando uma coisa contamina a outra com liberdades para a ocorrência de um “narrador intruso” (que se intromete na história) e é ironicamente chamado atenção pelos demais personagens/atores.

          Coube à direção, neste espetáculo de simplicidade de recursos e iniciativa de talentosos atores, favorecer o jogo dos intérpretes através de marcações ágeis e dinâmicas e conseguindo também driblar as modestas variações de luz com a presença viva do corpo dos atores e com alternâncias nas disposições das três cadeiras para o estabelecimento de diferentes ambientações. 

          É, desse modo, explorando a inteligência cênica dos atores, as possibilidades dramáticas dos textos e também o elemento musical (intrínseco à linguagem do melodrama) que o espetáculo tem no momento, na imagem e na execução de “O ébrio” (clássico de Vicente Celestino) por Gustavo Barros, um de seus pontos mais expressivos e interessantes. De modo curioso, neste momento, ante ao espetáculo de intesa presença verbal e sonora, têm-se uma espécie de cena muda com um esgarçamento da musculatura facial e gestual do ator, como que dublando a música em ária de ópera (destacado no proscênio) – o resultado impressiona, afeito que é aos arroubos interpretativos característicos do melodramático e que nos caminhos do mesmo a ópera cristalizou de maneira singular.

          A trilha musical, de fácil e imediata comunicação, pontua, via de regra, as transições de um conto para outro.

          “Antologia do remorso” é um espetáculo simples e feito com honestidade e talento, em que a simplicidade dos recursos não denota, em tempo algum, ausência de entendimento e cuidado; pelo contrário, é porta aberta para a criatividade de um elenco vigoroso e que escolhe, de maneira bastante adequada ao seu temperamento e virtudes cênicas, o melodrama.

          Um espetáculo que fala de questões espinhosas (a partir já do título de feições melodramáticas) sem a pretensão de ser denso ou sério. E por isso, diverte – o que a leveza da plateia confirma na saída do teatro.