Elegia Carlos Drummond de Andrade Ganhei (perdi) meu dia. E baixa a coisa fria também chamada noite, e o frio ao frio em bruma se entrelaçam, num suspiro. E me pergunto e me respiro na fuga deste dia que era mil para mim que esperava, os grandes sóis violentos, me sentia tão rico deste dia e lá se foi secreto, ao serro frio. Perdi minha alma à flor do dia ou já perdera bem antes sua vaga pedraria ? Mas quando me perdi, se estou perdido antes de haver nascido e me nasci votado à perda de frutos que não tenho nem colhia ? Gastei meu dia. Nele me perdi. De tantas perdas uma clara via por certo se abriria de mim a mim, estrela fria. As arvores lá fora se meditam. O inverno é quente em mim, que o estou berçando e em mim vai derretendo este torrão de sal que está chorando. Ah, chega de lamento e versos ditos ao ouvido de alguém sem rosto e sem justiça, ao ouvido do muro, ao liso ouvido gotejante de uma piscina que não sabe o tempo, e fia seu tapete de água, distraída. E vou me recolher ao cofre de fantasmas, que a notícia de perdidos lá não chegue nem açule os olhos policiais do amor-vigia. Não me procurem que me perdi eu mesmo como os homens se matam, e as enguias à loca se recolhem, na água fria. Dia, espelho de projeto não vivido, e contudo viver era tão flamas na promessa dos deuses; e é tão ríspido em meio aos oratórios já vazios em que a alma barroca tenta confortar-se mas só vislumbra o frio noutro frio. Meu Deus, essência estranha ao vaso que me sinto, ou forma vã, pois que, eu essência, não habito vossa arquitetura imerecida; meu Deus e meu conflito, nem vos dou conta de mim nem desafio as garras inefáveis: eis que assisto a meu desmonte palmo a palmo e não me aflijo de me tornar planície em que já pisam servos e bois e militares em serviço da sombra, e uma criança que o tempo novo me anuncia e nega. Terra a que me inclino sob o frio de minha testa que se alonga, e sinto mais presente quando aspiro em ti o fumo antigo dos parentes, minha terra, me tens; e teu cativo passeias brandamente como ao que vai morrer se estende a vista de espaços luminosos, intocáveis: em mim o que resiste são teus poros. E sou meu próprio frio que me fecho Corto o frio da folha. Sou teu frio. E sou meu próprio frio que me fecho longe do amor desabitado e líquido, amor em que me amaram, me feriram sete vezes por dia em sete dias de sete vidas de ouro, amor, fonte de eterno frio, minha pena deserta, ao fim de março, amor, quem contaria ? E já não sei se é jogo, ou se poesia. | |
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destinado à escrita poética que se estende em reflexões sobre arte e cultura, além de divagações e pensamentos sobre projetos artísticos pessoais
sábado, 27 de fevereiro de 2010
domingo, 14 de fevereiro de 2010
Bambas e poetas!
Mais do que bambas eles são verdadeiros poetas. Cartola, Nelson Sargento, Cavaquinho e outros mais enriquecem o cancioneiro e a poesia desse país. E não deixam de nos deixar, a cada vez de ouví-los, perplexos diante de tamanha profundiade e mesmo sofisticação lírica em indivíduos oriundos de contextos sociais tão ignorados pelo poder público e pela História.
Cartola, Sargento e Cavaquinho ilustram, representam aqui uma porção de bambas que precisam ser ouvidos e lidos - seus versos mantêm vida literária!
Ainda é cedo amor
Mal começastes a conhecer a vida
Já anuncias a hora da partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar
Preste atenção querida
Embora saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco a tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és
Ouça-me bem amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões à pó.
Preste atenção querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás a beira do abismo
Abismo que cavaste com teus pés
(Cartola)
Quando eu piso em folhas secas
Caídas de uma mangueira
Penso na minha escola
E nos poetas da minha estação primeira
Não sei quantas vezes
Subi o morro cantando
Sempre o sol me queimando
E assim vou me acabando.
Quando o tempo avisar
Que não posso mais cantar
Sei que vou sentir saudade
Ao lado do meu violão
Da minha mocidade
(Nelson Cavaquinho)
Samba,
Agoniza mas não morre,
Alguém sempre te socorre,
Antes do suspiro derradeiro.
Samba,
Negro, forte, destemido,
Foi duramente perseguido,
Na esquina, no botequim, no terreiro.
Samba,
Inocente, pé-no-chão,
A fidalguia do salão,
Te abraçou, te envolveu,
Mudaram toda a sua estrutura,
Te impuseram outra cultura,
E você nem percebeu,
Mudaram toda a sua estrutura,
Te impuseram outra cultura,
E você nem percebeu.
(Nelson Sargento)
Agoniza mas não morre,
Alguém sempre te socorre,
Antes do suspiro derradeiro.
Samba,
Negro, forte, destemido,
Foi duramente perseguido,
Na esquina, no botequim, no terreiro.
Samba,
Inocente, pé-no-chão,
A fidalguia do salão,
Te abraçou, te envolveu,
Mudaram toda a sua estrutura,
Te impuseram outra cultura,
E você nem percebeu,
Mudaram toda a sua estrutura,
Te impuseram outra cultura,
E você nem percebeu.
(Nelson Sargento)
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